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Conta-se que um dia, Sócrates, andando pelo mercado de Atenas, observando os diversos objetos lá expostos, exclamou: “Por Zeus, de quantas coisas os atenienses precisam para viver!”. Não se sabe se esta anedota é verdadeira, mas se é, com certeza influenciou as atitudes de alguns filósofos como Antístenes, fundador da escola cínica, e Diógenes, o seu grande representante. A pergunta, por ser boa, permanece: de quantas coisas nós precisamos para viver?

Desde a antiguidade até nossos tempos, parece que a resposta geral é “muitas coisas, quanto mais melhor”. Muitos confirmariam a insaciabilidade do desejo, descrevendo-o como um buraco sem fundo, procurando obter cada vez mais sem se preocupar com as consequências. “A mão deve pegar tudo aquilo que pode alcançar”, eles diriam. Do outro lado, seguindo a linha da moderação dos cínicos, perplexos como Sócrates, estão os ascetas: “não, precisamos de quase nada”, eles argumentam. No quesito desejo, menos é mais. Se o desejo é insaciável, então não se trata de um problema de quantidade, e sim de uma questão de qualidade: do que realmente precisamos? A boa resposta nos mostrará que a felicidade não precisa de muita coisa para florescer, e mesmo alguém que mora num barril pode ser feliz, pois foi isso que aconteceu com Diógenes muitos séculos antes de nós.

Ao longo da história, parece que as civilizações não se contentaram com menos, buscando o necessário. Pelo contrário, parece que queriam sempre mais. Em face desta demanda, a técnica parece ter sido sua maior aliada, e conhecemos isso hoje pelo nome de Progresso. A capacidade de usar instrumentos para aumentar a velocidade ou a quantidade da produção mudou radicalmente a partir da Revolução Industrial. Com as máquinas, a evolução tornou-se sinônimo de aperfeiçoamento e crescimento; em outras palavras, o florescimento confundiu-se com o acúmulo de objetos e a alegria tornou-se sinônimo de ter mais coisas.

A modernidade nos fez olhar para o passado como velho, ultrapassado, inútil. Como se o ontem não tivesse as mesmas condições de realização e plenitude que o amanhã. O dia seguinte sempre promete mais, será melhor, maior, mais próximo de como verdadeiramente as coisas deveriam ser. O futuro nos seduz dizendo que a inovação e a técnica nos entregará a tão prometida e ansiada felicidade. Ano após ano, década após década, na verdade, século após século, a esperança de um futuro melhor que nunca chega é empurrada goela abaixo com anúncios de inovações tecnológicas e o PIB acumulado das nações. Mas parece que o futuro ainda não chegou.

Ora, nossos dissimulados economistas sempre tergiversam dizendo que é preciso primeiro fazer crescer o bolo para depois dividi-lo. A saída é sempre mais produção, mais matéria-prima, mais indústrias, mais mercado consumidor, mais empregos, mais lucro. Pois bem, a Era da técnica é hoje praticamente sinônimo de capitalismo. E a demanda por mais é tratada como a coisa mais natural do mundo, pois promete suprir nosso desejo de algo que não sabemos bem o que é. 

– Hércules e a Hidra de Lerna – Gustave Moreau

Enquanto a solução não chega, nós continuamos. Mas é estranho, porque parece que cada problema suprimido acaba criando um novo. Assim como a monstruosa Hydra de Lerna, enviada por Hera para matar Hércules, cada inovação tecnológica relativa à economia do lucro apenas multiplica nossas demandas e aumenta nossas necessidades. Um problema resolvido parece criar mais dois. 

Não é difícil perceber que alguma coisa deu errado em todo este processo. Se antes as máquinas prometiam um futuro melhor, se antes nós usávamos a pedra lascada e o martelo para ter um pouco mais de comodidade, agora parece que o feitiço virou contra o feiticeiro, as máquinas ganharam vida e os dominadores da natureza se tornaram súditos de suas criações. As coisas nos usam. O celular, por exemplo, nos prende por horas em estado de distraída letargia. Nós nos sentimos senhores de nossas decisões, curtindo fotos e vídeos numa rede social, mas não percebemos quem são os verdadeiros expostos na vitrine.

A ideia de progresso parecia ser nossa, o futuro parecia ser melhor que o passado, quem não aceitaria esta premissa se esta fosse a conclusão? Mas o futuro parece nos ter sido roubado pelo capitalismo, que jura de pés juntos que o ano que vem será melhor e, no entanto, sempre reverte seus lucros astronômicos apenas para seus fiéis investidores. Nos tornamos apêndices de máquinas que trabalham em tempos muito diferentes do nosso. Toda uma reforma científica foi feita com a justificativa de melhorar nossas vidas (e em certos aspectos realmente melhorou), mas o processo saiu de nosso controle. 

Isso acontece porque o problema está em outro lugar: desejamos as coisas erradas! A vida boa, prometida pelo progresso não parece ter atingido nossas almas. Na verdade, parece que ainda queremos mais, ainda não temos o bastante. Mas até onde podemos ir? Alguém já conseguiu matar a sede bebendo água do mar? Será que isso é possível?

A alma grita soterrada por todos os utensílios domésticos que compramos para a praticidade do dia a dia. Parece que a inteligência, que poderia ter nos libertado faz tempo, se esqueceu de sua tarefa primária. Parece que a tecnologia nos escravizou ainda mais. Não surpreende, envolta por uma embalagem atraente ela prometia muito mais do que era capaz de entregar. Em suma, nosso conhecimento técnico intelectual correu a passos largos, enquanto alguma coisa ficava pra trás, esquecida. Neste ínterim, esperamos, como diz Bergson, um suplemento de alma. E mesmo o último celular disponível, o lançamento do carro elétrico do ano e todo este bem-estar tecnológico não vão suprir estas demandas que são de outra qualidade.

Ícaro, filho de Dédalo, gênio tecnológico da antiguidade, foi quem pagou mais caro. Embebido pela ousadia do pai, elevou-se acima do combinado e o Sol queimou suas asas, mostrando que eram mais frágeis do que ele imaginava. A Liberdade de Ícaro não estava em alcançar os Deuses, e a natureza cobrou seu preço. A alma de Ícaro queria subir ao céu, sem saber que este era o caminho para a morte. O progresso da tecnologia sequestrou nossa felicidade no aqui e agora, e está destruindo também o amanhã. Vivemos nesta crise temporal, com fé de que o amanhã vai resolver o hoje, sem saber que o desejo de hoje está destruindo o amanhã.


Referências

  • O universo, os deuses e os homens – Jean-Pierre Vernant
  • A Questão da Técnica – Martin Heidegger
  • Duas Fontes da Moral e da Religião – Bergson
  • Não-coisas – Byung-Chul Han

Como citar

TRINDADE, Rafael. Isto serve pra quê?. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/04/08/isto-serve-pra-que/>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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