É domingo, os fiéis entram na enorme catedral e sentam-se lado a lado, apertando-se nos bancos, arrumados segundo a seriedade que a ocasião demanda. Todos esperam pacientemente quando, às 7 horas em ponto, o Padre entra pelos fundos da Igreja, carregando a Ética nas mãos. Os fiéis se levantam em sinal de respeito, e o padre diz:
P. Que o Deus de Espinosa esteja convosco.
F. Ele é a natureza
P. Em nome da Substância, dos Atributos e dos Modos Finitos.
F. Amém.
Vamos ler a Palavra de Espinosa, que lhe foi entregue por inspiração racional, no formato geométrico. Abram suas Éticas na Parte V, proposições XX e XXXVI.
Ouve-se o barulho de papel sendo manuseado. Quando o som diminui, o Padre começa:
“Este Amor a Deus não pode ser manchado nem pelo afeto de Inveja, nem pelo de Ciúmes, mas é tanto mais fomentado quanto mais imaginamos mais homens unidos a Deus pelo mesmo vínculo de Amor”
A Ética está em latim, mas o padre traduz enquanto lê:
“0 Amor intelectual da Mente a Deus é o próprio Amor de Deus pelo qual Deus ama a si próprio, não enquanto é infinito, mas enquanto pode ser explicado pela essência da Mente humana considerada sob o aspecto da eternidade; isto é, o Amor Intelectual da Mente a Deus é parte do amor infinito pelo qual Deus ama a si próprio”.
P.Palavra à maneira dos geômetras
F.Como se queria demonstrar (C.Q.D.)
Silêncio absoluto na igreja. O padre então fecha a Ética e desce do altar, começa a andar pelos fiéis encarando cada um deles no olho, perscrutando seus sentimentos, pensando se haviam entendido o que foi lido. Depois de um tempo, volta a falar:
P. Esta passagem da quinta parte é complicada, mas eu tenho o entendimento das escrituras e posso revelar o que foi dito. Muitos confundem Deus com uma figura antropomórfica, mas está errado, Deus é a Substância Infinitamente Infinita, causa de si e dos outros. Nós nos confundimos porque somos modos, ou seja, somos finitos e temos acesso a apenas dois atributos divinos: Matéria e Pensamento. Por isso imaginamos Deus como um Rei, um Legislador poderoso e caprichoso, mas está errado, nunca pensem assim! A palavra racional revelada no sagrado livro da Ética demonstra que Deus é toda a natureza à nossa volta, determinada pela sua própria essência, e nós mesmos somos parte desta natureza necessária.
O silêncio perdura, ao fundo ouve-se um velho tossindo e uma criança de colo balbuciando sílabas desconexas. Ninguém tem coragem de se manifestar, todos fazem o máximo de esforço para compreender aquelas incompreensíveis palavras de sabedoria: Substância Infinita, Modos, Atributos? Mesmo repetindo toda semana a mesma coisa os fiéis continuavam sem compreender, por isso confiavam na interpretação do padre, que depois de um breve momento, continua:
P. Nós não podemos amar a Deus esperando alguma coisa em troca, Deus não é como uma pessoa com a qual conversamos interessadamente pedindo por benefícios, bênçãos, milagres.
Ao ouvir esta palavra, a igreja estremece, vê-se que os fiéis começam a ficar incomodados, o padre não gostava de milagres, e sempre dava lições de moral sobre este assunto. Em meio ao constrangimento, alguns cochicham palavras de incômodo no ouvido de seu vizinho. Mesmo assim, o padre insiste:
P. Nosso amor a Deus se faz unicamente através da compreensão de sua essência, revelada pelas palavras de Espinosa. Ele diz que só podemos compreender a essência pela causa, e Deus é causa de si mesmo. Enquanto nós, parte finita da substância infinita, só podemos compreender a nós mesmos através de Deus, pelo atributo da mente, ligando a causa dos afetos finitos à cadeia infinita de efeitos necessários da substância. Apenas deste modo, meu queridos fiéis, poderemos refrear as paixões e nos tornarmos verdadeiramente livres. Eu vos digo, o caminho para a salvação passa por Espinosa, e por mais ninguém: apenas compreendendo nossos afetos e aprendendo a amar intelectualmente a Deus se alcança a beatitude.
O padre percebe que os fiéis o olham com confusão, suas palavras não eram bom compreendidas, ele estava perdendo seus cordeiros, sua mensagem precisava ser mais simples, neste instante de fraqueza diz com o máximo de convicção possível:
P. Nada é mais útil ao homem que amar a Deus e conviver de maneira benévola com outros homens. É isso que devemos fazer! Amar a Deus e uns aos outros, nada mais!
Alguns fiéis ainda se mexem nas cadeiras, mas agora é possível ver uns poucos sorrisos surgindo no meio da confusão, e o padre continua:
P. Através destes bons encontros, nos tornamos mais capazes de afetar e sermos afetados por afetos alegres, a nossa potência de pensar e de agir no mundo aumenta. A Beatitude pode ser conquistada e este livro em minhas mãos é o caminho! Por isso esta igreja, por isso eu estou aqui.
Pronto, o padre conseguiu, percebia no rosto de seus fiéis um olhar de esperança (e não mais de medo). A alegria era possível, e mais, a salvação era possível, era só amar a deus e uns aos outros. A mensagem de amor, escondida nas frases em latim, tinha sido transmitida. Mas o padre, semana após semana, sentia-se cada vez mais frustrado, porque ele precisava simplificar tanto a sua mensagem, ela não havia sido revelada racionalmente por Deus ao próprio Espinosa? O Padre, perdido nestes pensamento, volta a si ao perceber seus fiéis lhe observando com expectativa: era hora da consagração. Ele volta ao altar, enquanto tenta voltar a si mesmo, e diz: “Oremos”.
Os fiéis estendem as mãos com as palmas voltadas para o alto, enquanto o padre retira o pano que o cobria a a taça no altar. Levanta um pão em formato circular e diz, “comam, esta é a matéria, um dos infinitos atributos divinos pelos quais Deus se expressa”. Em seguida, levanta o cálice de vinho e diz, “bebam, este é o pensamento, o segundo atributo do qual somos feitos”. Através deles firma-se a aliança eterna entre a mente e corpo, e dos Modos Finito com a Substância Infinita”. Os fiéis se levantam e formam fila para comer a hóstia embebida no vinho. Após todos retornarem para seu lugar, o Padre diz: “Rezemos como Espinosa nos ensinou na sua última noite, antes de falecer por complicações respiratórias devido ao pó de vidro das lentes que polia”:
Deus Substância que és a natureza
Definido geometricamente seja o vosso nome
Venha a nós a vossa Essência
Seja feita a vossa determinação
Assim no pensamento como na matériaOs bons encontros de cada dia nos dai hoje
Perdoa Deus as nossas superstições
Assim como nós perdoamos a impotência que os outros nos têm infligido
E não nos deixei cair na servidão
Mas livrai-nos dos maus encontros
Amém
P. Em nome da Substância, dos Atributos e dos Modos Finitos. Amém. Que a bênção de Deus todo-poderoso revele-se e permaneça para sempre convosco.
F. Amém.
P. Ide em coerência, constância e conveniência, e que a potência de Deus vos acompanhem.
Os fiés se levantam e cumprimentam dizendo: “a paz de Espinosa”, sorrindo sinceramente uns para os outros. O padre fecha a Ética e observa seus fiéis com desencanto, alguma coisa estava errada, mas ele não sabia dizer o que era. Havia um incômodo intraduzível, um aparente desencontro entre as ideias contidas no Livro e a austera liturgia com que eram transmitidas. Talvez a igreja não fosse o lugar certo para a mensagem de Espinosa, assim pensava o Padre, com um desespero latente que se esforçava para não admitir. E ainda assim, os fiés voltavam semana após semana para ouvir suas palavra e repetir em alegremente em coro “Quod erat demonstrandum”, que significa “como se queria demonstrar”, em latim.
Referências
Ética, Espinosa
Tratado Teológico Político, Espinosa
Um Livro Forjado no Inferno – Nadler
50 Contos de Machado de Assis
Parabéns Rafael, excelente texto, aula sobre Espinosa.Maravilha. O filósofo que ousou não ser nada, mas nos deixou um legado reflexivo que nos faz mais racionais. Muito bom. Abraço.