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Quem não se lembra daquela brincadeira onde uma pessoa ficava na posição de “mestre”, e todos os outros se esforçavam para imitar seus movimentos da melhor maneira possível? Normalmente uma dedicada professora estava neste papel enquanto as inocentes crianças se divertiam fazendo o possível para serem a sombra perfeita desta figura de referência. Sim, parece existir em nós uma pré-disposição filogenética de imitar os movimentos do mestre, seja ele quem for.

Conforme o tempo passa, a professora do ensino infantil fica para trás, e o Mestre da brincadeira se torna pouco a pouco obsoleto enquanto os gestos a serem imitados são lentamente internalizados. Eles se tornam abstrações de conduta, força inconsciente, às vezes, reflexos de submissão. Ainda brincamos de “siga o mestre”, mas agora sem perceber, porque ele não está mais lá na nossa frente, não precisa ser observado, não precisa de comando; a partir de então, nossos movimentos seguem uma ideia, imitam de modo irrefletido um modelo introduzido em nossa subjetividade. A partir de então, corrigimos nossa postura, nosso tom de voz, nossos mínimos gestos tendo em vista este mestre que se tornou uma força virtual, que está lá, mas não é visível. 

Depois de aprender a seguir o mestre sem que este esteja lá, as crianças são consideradas adultas. Isso não vem de hoje, na antiguidade, a contemplação do Sábio era um importante exercício estoico, onde o pupilo se esforçava para ter sempre em mente o que seu mestre, ou melhor, os grandes mestres do estoicismo fariam. As cartas de Sêneca a Lucilio mostram isso perfeitamente. Os estoicos fazem uso constante de dois exemplos famosos: Sócrates e Hércules, modelos de virtude. Inclusive, a famosa máxima estoica: “viver conforme a natureza”, herança cínico-socrática, segue esta mesma ideia. Imitar um modelo é saber posicionar-se na ordem do mundo.

Entretanto, desde os tempos antigos parece que os modelos tendem a se tornar ciumentos e possessivos. O Deus do antigo testamento, por exemplo, sentiu-se profundamente ofendido com a existência de ídolos para outros deuses (Êxodo 34:14) e muitas vezes se vingou desta traição. Parece que quando uma referência se afirma como única, a atitude de seus seguidores se torna artificial e mecânica. Diferentes perguntas começam a receber sempre as mesmas respostas. O que é muito estranho do ponto de vista prático, porque mesmo a bíblia é múltipla. Quem negará que as atitudes de Moisés, Isaías, Paulo e Jesus são bem diferentes? Aliás, até mesmo o Deus do velho e do novo testamento se comporta de maneira bem diferente.

Como argumentar com aqueles que só possuem uma única referência e agem como se já soubessem todas as repostas para todas as perguntas? Como mudar aqueles que acreditam que o certo só pode ser feito de uma única maneira e o errado, de várias? Em outras palavras, de que serve a multiplicidade àqueles que se tornaram unidimensionais?

Afinal só existe um único mestre? Se o que vemos são inúmeros pretendentes: será que algum deles é o verdadeiro e único? Parece difícil manter uma única alternativa em face das inúmeras situações a que somos convocados. O mestre a ser seguido no cristianismo é Jesus, claro, e na filosofia antiga com frequência é Sócrates. Mas quem seguir na cozinha de um restaurante prestigiado, ou numa luta com Katanas, ou na definição de políticas públicas? É estranho, porque num mesmo campo de conhecimento os mestres podem ser apostos, o modelo da esquerda é Marx e Lenin, na direita é Adam Smith e Mises. E assim por diante, os profetas e falsos profetas vão gritando “eu sou o verdadeiro mestre, me siga”.

O que fazer quando as placas apontam em tantas direções diferentes? Muitos começam a ficar confusos. E neste momento que se fecham, começam a lamentar a dizer que antigamente é que era bom: os meninos levavam seu refrigerante e meninas levavam o prato de doce ou salgado e pronto. Este modelo tradicional de festa infantil parecia refletir uma sociedade bem dividida e sedimentada. Esta é a versão culinária de meninos vestem azul e meninas vestem rosa, a crença de que existe um modelo certo e determinado para cada um e que é perigoso intervir nisso.

Entretanto é impossível negar que os modelos mudam. Por exemplo, uma festa com dedo no cu e gritaria começa a ser muito mais interessante depois de uma certa idade. Ora, por que não? Nós mudamos, as circunstâncias mudam, e os modelos também! Quando criança nossas referências são umas, quando adolescentes, se tornam outras, e por fim, na maturidade e na velhice se transformam novamente. É importante salientar que as referências mudam de acordo com as circunstâncias no espaço e no tempo de acordo com as circunstâncias. Há momentos em que Carlos Marighella é uma figura mais interessante que Lula e outros em que Madona é mais interessante que Lênin. Ou seja, a escassez de referências se serve para limitar nossa imaginação! O problema não consiste em ter referências, e sim na limitação delas a uma única.

Neste ponto, retomando o exercício da Contemplação do Sábio, Cícero aparece com um pensador bem diferente para seu tempo. Na canônica história da filosofia ele é denominado um estoico, mas podemos considerá-lo com facilidade um eclético, porque não se limitava a ler sempre os mesmos pensadores, e muitas vezes escrevia sobre o pensamento de epicuristas, dentre outros, em seus escritos. Ora, se um pensador disse algo de interessante, não interessa de qual escola filosófica ele provém, mas que seu pensamento ganhe o devido reconhecimento. 

O ser humano é finito e frágil, tem medo, e por isso corre o risco de fechar-se em caminhos estreitos. Encontrar um modelo de conduta é o seu jeito de sentir-se protegido. Não tem problema, mas se existir apenas um livro, uma atitude, uma ideia, uma referência, são as próprias possibilidades da vida que se mostrarão limitadas. Como vimos, os modelos são múltiplos coexistentes, e há uma força alegre na capacidade de alternar entre um e outro, como o ator que veste roupas diferentes no palco para performar diferentes papéis. Ao deixar uma referência de lado, percebemos que ela não precisa ser descartada, basta que fique lá, à espreita, aguardando seu momento, como um sábio silencioso, que só fala quando é solicitado.

Referências

  1. Conceito de Cunhagem ou Imprinting – Konrad Lenz
  2. Enchiridion – Epicteto
  3. Segundo Sexo – Simone de Beauvoir
  4. Imagens de Mircea Suciu


Como citar

TRINDADE, Rafael. Siga o mestre. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/05/13/siga-o-mestre/>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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