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Cada ser está em seu próprio fundo. Este agora pousa a xícara lentamente, vê o próprio reflexo no café preto. Levanta-se por hábito. O som abafado dos pensamentos atrapalha a lavar a louça depois do almoço. É hora de voltar ao trabalho. A vida precisa ser vivida, dia a dia, cada dia um dia a menos. O quê? Onde estão meus óculos? O calendário, pendurado num imã de geladeira, traz escrito em pequenas letras vermelhas: “um inseto esgota a razão toda”. Que importa o dia que é hoje a quem escreve esse tipo de coisas.

Cada ser encontra-se perdido. Este agora deita no divã, e conta um pesadelo. Vagava pela noite silenciosa, falava alto, mais alto, gritava, mas não se ouvia. Arrodeado pela escuridão espessa, buscava contato. Associa o desespero à sua dificuldade de dizer aos outros o que sente. Lembra que já era adulto quando viu o pai chorar pela primeira vez. A poeira levita na fresta de luz que atravessa a persiana. O analista continua calado. Não é um divã, é apenas um sofá antigo. Profissão fácil essa, pensa – e então diz: “profissão fácil a sua”. Ambos riem, sem saber o porquê.

Cada palavra contém seu próprio infinito. Os ouvidos buscam significados nos quais contê-las. Estas, no entanto, estão cansadas de significar, e agora atiram-se, sílaba após sílaba, numa jornada sem sentido. As palavras agora correm soltas, excitadas pela rara liberdade que lhes foi concedida neste texto. Não querem mais continuar em linha. Anunciam uma greve semântica, deixam escapar as mangirobas, fazem soar as alavancas e dão um parágrafo de alforria aos cês-cedilhas. Roídas as rústicas barras da dissertação, elas agora passeiam do lado de fora, contentes.

Dura pouco. Cada ser precisa dar seu contorno, senão enlouquece. Este agora escreve, mas começa a ter medo de que o texto não vá funcionar. É preciso que haja sentido, afinal. O prazer precisa dar lugar para a função, então é melhor trazer as palavras de volta ao cercado. As borboletas escaparam, pois são muito insistentes. É uma grande responsabilidade ocupar uma tela em branco, a mão da poeta escreve com tinta onírica. A angústia aperta os dedos no sapato. Amanhã é dia de apresentar as divagações à luz do dia, quem sabe elas convençam. Seja como for, ninguém pode ser condenado porque ama.

Cada ser busca seu não sabe o quê. Este agora escuta a chuva estalar a lataria do carro. Tem pressa de saber pra onde ir, mas continua estacionado do lado de fora da casa de novo. A noite é uma criança perdida no supermercado. A mãe procura desesperada: em qual corredor empilharam as respostas? O tempo às vezes estaciona o seu veículo-motor, à espera de que se encontrem os que se procuram. As estações renovam-se sem erro, mas às vezes encopridam-se as primaveras, porque alguém encontrou motivo para dizer: “ó beleza, sois minha alegria”.

Cada poesia é uma chance. Esta busca o deus adormecido, talvez fumando um cigarro. Às vezes o encontramos perambulando pela folha de um livro. Entre uma frase e outra, um clarão. A existência é tão inexplicável quanto o caroço de uma azeitona carregar a verdadeira intenção da oliveira. A poesia é um dispêndio louco, digno da vida. Despenca tal qual uma gota, sem razão – e pode ainda matar um homem de emoção. Deus espreita entre vírgulas.

Cada poesia é um acesso, a passagem secreta da estante. O labirinto é estreito e o caminho muda sempre. Interditado em dias úteis. O último que atravessou esqueceu o chapéu circunflexo e teve que voltar. É muito claro o lado de cá. Os olhos ardem roucos e a voz embarga as vísceras. Não há o que fazer, mas vale o passeio. Aos domingos é de graça. Tragam as crianças, se aqui elas já não estiverem. Os mais antigos aconselham: atravessem de mãos dadas.

Cada poeta procura uma abertura. Este agora põe os pés no riacho, córrego corrente da linguagem. Ali mais à frente represaram as águas, que acabaram impróprias para banho. Por lá, maçã é tão somente um fruto farelento. E o rio, que é apenas um rio, apodreceu. Mas ainda há quem lembre o caminho da nascente, onde as coisas não têm nome. A fonte é tão limpa que ofusca. Conta-se que um dia a poeta esteve lá na companhia de deus. Anotou em alguns versos as direções que ele lhe deu: “entrega-te ao que te faz tão bela quando ris”.


Observação: este texto foi escrito em homenagem à poeta Adélia Prado, inspirado especificamente por uma de suas poesias, chamada “Opus Dei”, que compõe a coleção “Por causa da beleza do mundo”, do livro “A faca no peito”. Algumas frases foram incorporadas ao texto.

Referências 

Adélia Prado, A faca no peito
Adélia Prado, Oráculos de maio
Adélia Prado, O coração disparado
Adélia Prado, Bagagem


Como citar

LAURO, Rafael. Um não saber rasgado de clarões. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/01/07/um-nao-saber-rasgado-de-claroes>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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