Todo começo é uma promessa. Este texto, e até esta frase mesmo promete uma conclusão, que um simples ponto de interrogação poderia interromper, não é? Ainda assim, conforme o parágrafo avança, cresce a expectativa de que o texto cumpra seu pacto com o sentido. Cada palavra desenha um pedaço do caminho, que percorremos juntos em busca de satisfação. Algumas curvas são esperadas: um termo desconhecido aqui, uma longa descrição ali, uma repetição desnecessária acolá – até que eventualmente começamos a nos perguntar quando é que vamos chegar em algum lugar. Agora mesmo, centenas de sílabas foram despejadas, mas quase nada foi dito. Ler é um exercício de paciência. De qualquer maneira, é preciso que uma resposta venha em algum momento, de preferência no tempo certo, respeitando o equilíbrio entre a excitação e o tédio. A ansiedade cresce conforme a conclusão se aproxima, e pode até ser que ela cumpra com o prometido, nos arranque algumas lágrimas, nos leve à loucura ou à razão, quem sabe. Inevitavelmente, porém, o fim de uma história deixa um gosto amargo, pelo fato de que, colocar em palavras o que era pura espera, o que não tinha imagem, é uma espécie de traição decente, aquela que acaba com a dúvida. O saber é o fim do mistério. Talvez seja esse o motivo pelo qual alguns escritores gostam de deixar a história inacabada, delegando aos leitores a tarefa ingrata de terminar o trabalho. Se é gentileza ou covardia, caberá a eles decidir. Fato é que ninguém sabe ao certo o momento de terminar: os que escrevem, mas também os que lêem, às vezes param o livro na metade, para que ele nunca acabe. É difícil lidar com a necessidade do fim, especialmente quando estamos envolvidos. Para que a frustração seja mínima, existem também aqueles que buscam escrever o final perfeito, o único possível. É um gesto de grande lealdade com os personagens, e também com todos em que neles se vêem. Seja como for, deixar em aberto ou fechar uma história são duas formas de fracassar: o ponto final é um terror para quem escreve, uma arbitrariedade cruel, como é todo fim. Ninguém consegue evitar o término e seus desgostos, e é por isso que, no final das contas, escrever é uma maneira de adiar o fim. Seríamos eternos se pudéssemos. Então, enquanto estamos por aqui, insistimos em recomeçar. A repetição é um drible. Esse é o motivo pelo qual contamos incontáveis histórias de amor. Todas elas são tão banais quanto indispensáveis, variações de um mesmo tema que todos nós sabemos cantar. O grande problema é que elas terminam – e não importa se mentem, rezando a missa do “felizes para sempre”, ou se aceitam a dura realidade da morte, literal ou metafórica. A despedida é o pior dos temas, porque é inevitável. Nosso melhor recurso é o floreio, é o balançar as mãos no meio da estrada, roçar a ponta dos dedos nas folhas que ladeiam o caminho, mas não só, é também o ruído das tempestades, os dias de fúria, o retrato do vazio. Prazer e dor são tão indispensáveis no movimento de uma história quanto tensão e resolução o são em uma canção. Ao que tudo indica, essa justaposição de contrários é o que intensifica o movimento. Assim, em um romance, a escrita bem feita, cuidada, é uma forma suprema de erotismo, porque insere um terceiro termo estranho entre o começo e o final: Eros é um dos nomes para isso que existe entre, que mora no meio, no coração da linguagem. É por meio dele que algo se insere entre a pergunta e a resposta, como o desvio que nos faz passar pelo ponto C enquanto íamos tranquilamente de A a B. Nesse sentido, o romance é uma ponte que triangula, e o mote de uma romancista é “ainda não”, “ainda não”, “ainda não”. Em suas mãos, o tão aguardado beijo nunca chega antes da hora: o céu precisa ser visto, o farfalhar deve ser ouvido, a pele precisa vir à flor, os olhos desviados anunciam, as ideias estacionam, a atmosfera se transforma em espera, o movimento dos planetas, os tremores da terra, a umidade, tudo conspira para que os amantes troquem o que há de mais sagrado, menos um beijo que seja apenas um beijo. Só se escreve o amor abrindo passagem para a grande alegria do mundo. Para que escrevemos, senão para tentar dizer aquilo que não há como ser dito, que não pode ser resumido, que não cabe em palavras, que não cessa nunca? Não é fácil despertar para a beleza inédita que existe em todo amor, isso se alcança apenas quando rasgamos as imagens convencionais com a força de Eros, torcendo o pano encharcado da linguagem cotidiana por meio do atraso, da demora, do erro, em suma, da dúvida. Acima de tudo, o erotismo serve às coisas que não querem terminar. A ironia é que, sozinho, o prazer não sustenta a tensão de seu próprio desejo. Chegar rápido demais não deixa de ser uma forma de morrer antes da hora. Por isso, a curva é o gesto magistral deste deus que acende as palavras. Os pensamentos também erguem-se excitados pelo que não compreendem. Já dá para sentir o final se aproximando. Talvez acabe numa pergunta, esse macete de filósofo que sabe que não sabe. Ou não. Talvez uma frase de efeito venha emprestar sua força para justificar o fim. Ou não. Talvez ele termine sem final… Não, é melhor cumprir as promessas. Talvez o melhor final para uma história seja aquele nos leva de volta ao começo. Vamos combinar que essa acaba aqui, então. Foi um prazer. Por hora, adeus.
Textos Relacionados
Autor Rafael Lauro
Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.
Delicioso! Principalmente em “sozinho, o prazer não sustenta a tensão de seu próprio desejo”.
Obrigado, Carolina <3
que texto envolvente!
🙂