A vontade de fumar um cigarro, de desligar o despertador, de mandar o patrão à merda, de assistir só mais um episódio, de adotar um quinto gato, de comprar o milésimo livro, de continuar rolando tela abaixo pelos memes, de tomar mais um copo, de ser o primeiro a dizer eu te amo, de ler o romance imenso pela segunda vez, de continuar procrastinando, de apagar as mensagens, de fotografar tudo, de sair das redes sociais, de abandonar o curso, de desistir da academia, de cancelar o aniversário, de desapaixonar quando é demais, mas também de encontrar um amor quando falta não se sabe o quê.
Tantos quereres permanecem guardados dentro da gente. É estranho, temos pouco tempo e muita vontade: por que, então, dizemos “não” para aquilo que palpita “sim” dentro do peito? Ah, bruta flor do querer … se fosse assim tão simples dizer sim1. A querência é uma arte difícil de dominar, porque nos arremessa de encontro à contradição. Quem nunca quis estar em dois lugares ao mesmo tempo que atire a primeira pedra. Os desejos chocam-se uns com os outros sem o nosso consentimento, e parece que o que nos resta é enunciar os vencedores – ou então tentar contrariá-los.
Fato é que cada um de nós contém suas próprias multidões. Para cada desejo, há um bloco inteiro de ideias preparado para desfilar pela rua. Basta que um caminho se apresente e todo um departamento de fantasias se mobiliza em nossas galerias, preparando o carnaval antes mesmo de saber se o desfile realmente vai acontecer. Aí está, não há garantia de que um desejo trará toda a alegria que foi prometida na véspera. Talvez seja essa frustração que nos leve a desconfiar daquilo que queremos, começando a oferecer alguma resistência aos pretendentes.
“Será que eu quero isso mesmo?”, perguntamos a esse outro de nós que de repente começa a aparecer nas conversas. “Talvez não seja ainda a hora”, argumentamos preocupados. “Eu já tentei isso antes”, insistimos revirando os olhos. É uma forma de combate íntimo, que, muitas vezes, travamos enquanto falamos sozinhos sentados na cozinha em voz alta. De repente, assumimos o posto dos acusadores, movemos os contras com eloquência, para dois minutos depois, assumirmos meticulosos o papel da defesa e de seus prós. Oferecer uma audiência aos quereres e suas contradições é abrir-se para a loucura de quem insiste em ser feliz.
A imagem de alguém conversando com suas próprias caretas é cômica, mas a batalha aqui não é mera metáfora: há momentos em que sofremos como num suplício em que quatro cavalos puxam nossos membros um para cada lado. Alguns desejos retornam como demônios que precisamos exorcizar, porque já conhecemos o caminho pelo qual eles nos querem levar – é um desfiladeiro de servidão, repleto de tristezas, que nos enrolam em uma espiral descendente. O mais difícil de compreender é que eles não deixam de ser desejos por causa disso: somos perfeitamente capazes de desejar coisas que nos fazem mal. Às vezes eles se manifestam como simples palavras, outras vezes como frases que não conseguimos esquecer, outras ainda como imagens de nós mesmos, que nos vêm assombrar – e dói como uma faca no peito.
Esse é o motivo pelo qual nosso vocabulário é uma farmacopeia, isto é, uma aptidão para transformar palavras, frases, imagens em veneno de um lado, remédio do outro2. Um fármaco é isso, ao mesmo tempo saúde e doença, vida e morte, a depender da dose. A questão é que, no âmbito da linguagem e do desejo, a dosagem não se regula em miligramas: é a maneira como as ideias se posicionam em uma rede complexa de significados que as leva para um lado ou para o outro3. Ou seja, a linguagem contém movimentos que podem tornar tudo tóxico, mas também prepara seus bálsamos. Daí a importância de encontrar bons significados para tudo o que se repete nessa dinâmica própria que chamamos de desejo.
Talvez nunca lhes tenha ocorrido que o jeito de dizer muda o sentir e o fazer. Nós precisamos de todos os recursos da linguagem para lidar com o que o mundo faz a gente desejar. A leitura, a escrita, mas também a conversa. Que diferença faz ter alguém acolhedor com quem conversar! A conversa é, por excelência, uma forma de multiplicar os significados possíveis. É nesse meio do caminho, com os cotovelos apoiados sobre a mesa, olhando no fundo dos olhos de alguém, que aparecem as vontades que nós não sabemos como afirmar, e também as ideias que nós queremos fazer sumir. Uma boa conversa arma uma rede na qual todas essas coisas deslizam suavemente, caindo em pé em vez de quebrarem-se estridentemente como cristais.
Seja qual for o recurso de que dispomos, parece que não há nada melhor do que refinar os quereres para lidar com eles – e aqui voltamos à necessidade de dizer não para algum deles. Para lapidar a bruta flor, é preciso podá-la com alguma frequência. Cortar alguns ramos, para que as folhas debaixo também possam crescer ao receber mais luz do sol. Esse processo difícil de negar, desistir, fracassar, errar, confundir, perder, é fundamental para entendermos de maneira mais ampla aquilo que nós somos, e o que faz sentido querer a partir daí. É difícil, mas o que nos faz continuar nesse combate é o fato de que, conforme tomamos parte nesse processo, novas e belas coisas aparecem. Aos poucos, vamos percebendo que, ali onde tudo parecia dado, onde apenas flor murcha significava desejo, existia uma miríade de possibilidades encobertas querendo florescer.
Não é fácil de admitir, dar uma forma para si mesmo requer alguma crueldade. Parece que não tem jeito, às vezes nós só conseguimos acessar essa multiplicidade que somos oferecendo aos desejos alguma resistência. A fertilidade requer que o solo seja revirado4. A coisa que nós mais queremos fazer às vezes pode ser aquela que mais impede tantas outras boas coisas de acontecer. É triste constatar que nesse campo vasto existem batalhas perdidas de antemão. Afinal, nós nem sempre temos voz suficiente para negociar os termos. Há momentos em que não nos resta muito mais do que ser perseguidos por nós mesmos. Nestes momentos difíceis, convém lembrar que sempre existe mais desejo esperando para viver a partir da gente.