As coisas belas nos querem para si mesmas. O musgo denso que abraça o tronco caído e lhe recobre de uma vida póstuma. O som distante de uma flauta sendo experimentada com aguda timidez. Belezas são coisas acesas por dentro, e desfilam sua nudeza por todos os lugares. Mas nós não somos assim tão belos, tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento. Estamos presos ao que não podemos deixar de ser, e existimos no ponto onde a banalidade cotidiana das tarefas se cruza com esplendor gratuito de todas as coisas amanhecendo juntas. Causa uma certa vergonha admitir, mas às vezes gostaríamos de sumir no meio delas.
Ser apenas uma gota a escorrer pelo vidro embaçado enquanto deixa seu rastro. Ou uma folha graciosa levitando piruetas ao vento. Não é forçado dizer que todos nós conhecemos a vontade de desaparecer, o que não significa exatamente que queiramos morrer: parece mais um desejo de não ser mais demandados pelas circunstâncias de nossa maneira própria de existir. Viver como observadores, e fruir dos inúmeros acontecimentos sensuais que se derramam a cada segundo. Não parece possível, ainda assim, vemos o pássaro recolhendo galhos, construindo o seu ninho, e nos perguntamos: o que é a consciência sem eu?
Talvez realmente soe como uma fantasia de morte. De toda maneira, estaríamos falando de uma morte digna de um deus1, absolutamente presente nas coisas, e ausente de si mesmo, totalmente diluído nas nuvens passantes, e pronto para condensar como um temporal. Acontece que a vida é muito grande, enquanto nós somos muito pequenos – e ela nos aperta, exigindo que os pulmões continuem seu enche-esvazia e que os pensamentos circulem apenas pelos caminhos conhecidos. Viver pode ser bastante monótono, mas o pior é que, com uma frequência asfixiante, temos que aceitar o retorno dos mesmos problemas, como velhos conhecidos acenando de maneira desagradável enquanto caminham em nossa direção. Trocaríamos de lado da calçada, se pudéssemos.
Aqui está a questão, todos nós temos que lidar com o fardo de ser uma – e apenas uma – pessoa. Então, nos vemos obrigados a comparecer diante dos outros vestindo aquela mesma velha roupa amassada: nosso nome próprio, nossa própria história, nossos irritantes limites e incapacidades. O mesmo no dia seguinte. O pior da tristeza talvez seja a maneira como ela escancara a nossa inaptidão para a liberdade. Ela nos obriga a encarar, de novo e de novo, problemas que não somem. O abandono na infância, as pernas tortas, o amor que não durou, os cabelos ralos, o sonho que não vingou, a língua presa, os acidentes infelizes – são sempre os nossos.
Não é natural, portanto, a vontade de sumir? Puff!, num segundo a moldura vai embora, e o que resta é o mundo em seu eterno acontecer. Todo o quadro de referências dentro do qual ele se apresentava sumiu, e agora contemplamos a paisagem, ou melhor, somos a paisagem. É muito justa essa revolta com a condição de estarmos presos em nós mesmos enquanto vemos tantas coisas mais interessantes por aí. Não conseguimos conter a vontade de ser aquele casal de adolescentes atravessando a rua de mãos dadas, o gato lambendo-se sob o sol da manhã, a fruta balançando em seu galho. Estes devires, tão raros, não costumam durar muito, retornamos depressa à inescapável situação de nossas tragédias particulares.
Se fosse uma conversa, este texto agora seria interrompido por um interlocutor desconfortável. Ele diria que nós só nos sentimos assim quando estamos tristes, que é preocupante, que podem até ser sinais de depressão. Então, para responder à altura, teríamos que lhe apresentar alguma proposta sobre a natureza da consciência. Existe toda uma tradição que pensa a consciência como uma coisa que sai por aí alimentando-se das coisas que percebe2. A partir dessa concepção, a vontade de sumir realmente parece uma ideação suicida. Querer abandonar aquilo que torna possível toda a experiência – quem em sã consciência poderia desejar isso?
No entanto, há muitas outras maneiras de pensar essa estranheza que é estar conscientes. Dizem que um dos atos inaugurais da fenomenologia é a intencionalidade, uma ideia que podemos resumir na célebre fórmula de Husserl: “toda consciência é consciência de alguma coisa”, ou seja, para que a consciência exista, ela precisa da existência de uma coisa que não ela mesma3. Desta perspectiva, nós não existimos a partir de uma interioridade que engole o mundo e o transforma em ideias, ao contrário, ela é feita no exterior. Em outras palavras, a consciência pode ser pensada como uma explosão dentro do mundo4, ou como o estranho florescer de uma reflexibilidade das coisas sobre si mesmas.
Sendo assim, a consciência deixa o centro e se faz à margem, entrecruzando a facticidade e a contingência. Dizendo de maneira mais direta, a consciência é uma forma moldada pelo que percebe. Ser uma coisa que diz “eu” não significa que possuímos uma alma em torno da qual as coisas rodeiam, mas que somos tão “eu” quanto tudo o que percebemos. É como se estivéssemos posicionados no centro de um xis, onde a percepção e os fenômenos se cruzam5. Neste sentido, uma pessoa é composta por si mesma e por tudo aquilo que a rodeia, e a diferença se dá apenas no fato de que algumas dessas coisas são mais transitórias do que outras. A consciência é uma dobra para dentro, uma concavidade de relevo singular, na qual algumas coisas estacionam enquanto outras passam.
Aí está uma ideia que pode nos ajudar a compreender a vontade de sumir – nós não estamos realmente aqui, estamos ali também. Ser é transitar sem parar, e a parada, quando acontece, é um corte no movimento natural de nossa consciência. Quando estamos reduzidos pela tristeza, nos tornamos menos capazes de lidar com esse trânsito que nos constitui. É uma característica da dor paralisar o movimento. Nos vemos estagnados em um conjunto de problemas que não desaparecem, que fazem toda a nossa existência orbitar meia dúzia de sólidos incômodos e, não podendo fazê-los sumir, acabamos querendo evaporar nós mesmos. Acontece de voltarmos muitas vezes no pensamento sobre o sumiço, mas será que isso é realmente uma doença? Ao que parece, existe uma grande saúde em tentar ser mais do que a pequena casca que nos envolve.
Teu texto, como chuva de verão, refresca a alma de nós, cuja vontade de sumir não se adequa à sociedade prozac. Obrigado!
<3
Gal definiu essa “tristeza” adulta como uma cantiga de roda pra crianças. Como segurar essa explosão do ser dentro de uma frágil casca criada pela sociedade? A gente racha, e os anjos vigiam pela fresta. Grande texto, um acalento.
muito obrigado 🙂
Lindo!
<3