Às vezes, quando eu levo algum conhecido em casa, ele se surpreende com a quantidade de livros por metro quadrado. Livros na cozinha, no banheiro, na cabeceira da cama, na estante da sala, na mesa do escritório e claro, nas prateleiras envergadas. Realmente, eu digo, é uma casa com muitos livros. A pergunta seguinte é quase sempre a mesma: mas você já leu todos eles? Como se a leitura integral me garantisse uma permissão para tal presunção. A resposta é (e provavelmente sempre será) a mesma: não, eu não li todos. O que, por fim, gera uma expressão de decepção em meu convidado, como se eu fosse uma espécie de farsa e tivesse acabado de ser desmascarado. O fato desta cena se repetir várias vezes seguidas me fez questionar: afinal, eu deveria queimar a minha biblioteca?
Todos conhecem a famosa história da Biblioteca de Alexandria, localizada no Egito e provavelmente a maior e mais famosa da antiguidade. Sua história está envolta em mitos e lendas, principalmente a de seu incêndio, que queimou parte de seu acervo. A biblioteca fazia parte de um esforço helênico de concentrar todo o conhecimento do mundo antigo em um único lugar. Pois é, os sábios helenos depositaram o material mais inflamável de Alexandria em um único lugar. Bastou uma vela derrubada e o resultado não poderia ser outro. Mas hoje é possível fazer diferente, nosso conhecimento é feito de bits e bytes, e está armazenado em inúmeros servidores refrigerados ao redor do globo. Quem precisa de bibliotecas quando a internet pode guardar este conhecimento de forma muito mais segura.
Outra questão, Bibliotecas são confusas. Por mais que possuam um qualificado processo de catalogação, que permite os livros serem encontrados facilmente na estante, esta capacidade jamais se equipararia à capacidade de um mecanismo de busca eletrônica. Mesmo que um experiente bibliotecário conheça a biblioteca como a palma da sua mão, quando o livro chega, é preciso lê-lo, página por página, e isso demora muito tempo. Nada se equipara a um celular literalmente na palma da mão, onde se encontram com facilidade resumos online, vídeos didáticos e resenhas de livros. Enfim, se o papel é quase tão antigos quanto a descoberta do fogo, então melhor reuni-los de pronto.
E afinal, quem tem tempo pra ler hoje? Todos sabem que a leitura é uma tarefa nada prática. Não dá pra acompanhar as páginas de um livro correndo na esteira ou cozinhando o jantar, muito menos dirigindo um carro. É bem mais fácil ouvir um podcast, rolar o feed, ver um filme. Escrever livros então é ainda mais complexo, quem seria louco a ponto de fazê-lo? Enfileirar letras encadeando ideias é extremamente difícil, além de demorado. Hoje é preferível deixar tal atividade para a Inteligência Artificial, que pode realizar esta função com muito mais desenvoltura. Se mesmo com computadores esta tarefa é ingrata, imagine pensar que pessoas faziam isso no passado com tinta, pena e papel Tal tarefa insana lembra os copistas da idade média, que copiavam livros inteiros na mão. Não, é preciso acabar com esta loucura. Livros são uma perdas de tempo, atrapalham as tarefas do dia a dia, impedem o bom andamento da rotina, eles são mais úteis na lareira, aquecendo a casa.
Além disso, livros são um tanto quanto elitistas e prejudiciais para o meio ambiente. Por que manufaturar tantos papel? Imagine a quantidade de árvores que precisam ser cortadas para fazer isso. E por último, é necessário muito espaço para acomodá-los. Eles são grandes, desengonçados e pesados. Fora isso, quem tem tempo para se sentar com uma coisa dessas? Pouquíssimas pessoas. Com um tablet é muito mais fácil de acompanhar as linhas curtas de um post de instagram, o resumo da manchete de jornal na internet, o vídeo reproduzido com o dobro da velocidade. As informações contidas nos livros são para alguns poucos e arrogantes selecionados que usam este conhecimento apenas para si mesmos, depositando suas ideias em mais livros, que por sua vez serão novamente depositados em bibliotecas, onde ficarão guardados juntando poeira. Que desperdício, o fogo seria um ótima maneira de resolver logo com este problema.
Bibliotecas são um desperdício de tempo, espaço e dinheiro. Estes prédios públicos poderiam dar espaço a atividades mais tecnológicas e atuais, uma fintech, por exemplo, é muito mais útil. Os especialistas em negócios hoje apostam muito mais na soja e nos bitcoins. Afinal, quando um livro salvou a economia de um país? Quando um livro salvou uma vida? Ninguém sabe ao certo, poucas pesquisas foram feitas neste campo, mas é preciso insistir no fato de que o conhecimento não gera poder.
Que há razão para não pôr fogo em todas as bibliotecas, sem exceção? Quem sentiria falta? Quem protestaria? As bibliotecas públicas estão abandonadas, sevem de abrigo para pessoas em situação de rua, as bibliotecas particulares são ainda piores, e mal servem como cenário para uma conferência online. É preciso aceitar que o tempo delas ficou para trás e sua existência é uma afronta às exigências do progresso.
Uma pena que nem mesmo atear fogo nelas será o bastante. O mal já está feito, e agora, o risco de incinerá-las é o de propagar suas ideias. Infelizmente, se livros são facilmente inflamáveis, suas ideias são ainda mais. Aliás, não há nada que excite mais um autor do que ver seus livros censurados e colocados no índex. Queimar uma biblioteca hoje é correr o perigo de suas chamas iluminarem a presença daqueles que foram forçados a permanecer nas sombras.
As ideias liberadas pela fumaça no ar funcionariam como o dióxido de carbono guardado nas calotas polares, liberar tudo de uma vez poderia causar desastres sociais incalculáveis. A queima de uma única biblioteca, segundo estudos conservadores, é capaz de contaminar a população de uma cidade pequena com ideias subversivas, algumas ainda desconhecidas. Bibliotecas guardam em seu interior pensamentos que ainda não foram pensados e que se espalhados aos quatro ventos podem colocar toda uma civilização abaixo.
Pois bem, se atear fogo nelas é uma estratégia perigosa, o melhor talvez seja ignorá-las. Simples assim, entregá-las aos sonhadores e desequilibrados, deixá-las em seu canto, até que apodreçam. Sendo assim, ao avistar uma biblioteca na rua, a melhor conduta é evitar fazer contato visual, e nunca entrar. E se por acaso for convidado a uma casa com uma grande quantidade de livros na estante, não fique olhando, finja que ela está vazia, e nunca, sob hipótese alguma, pergunte “você já leu todos eles?”.
Referências
- Fahrenheit 451 – Ray Bradbury
- O Nome da Rosa – Umberto Eco
- O General na Biblioteca – Italo Calvino
- Os quadros de Alex Schaefer