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Prezados Conservadores,

Já faz tempo que venho querendo falar com vocês. Escrevo esta carta para manifestar meu desconforto diante das suas recentes atitudes, principalmente por parte da sua ala mais radical, que têm feito bastante barulho recentemente. Vocês não percebem a gravidade da situação e talvez estas linhas sejam capazes de explicar o que está acontecendo.

Antes de mais nada, eu reconheço o esforço de vocês em preservar as tradições, e admito uma certa admiração. É louvável carregar nas costas este dever de defender o legado de seus antepassados, são poucos que possuem esta coragem. Vocês acreditam em algo e estão dispostos a lutar por isso, há beleza neste ato. Mas há um problema: o hábito em vocês, pouco a pouco, criou raízes profundas e lentamente sedimentou-se em teimosa crença; esta, por sua vez, degradou-se num feroz automatismo que hoje controla todas as suas ações. Vocês não agem, simplesmente reagem, vestiram tapa olhos para a realidade. Em outras palavras, sua tradição é o que hoje impede vocês de pensar. E diante desta obsessão, o costume transformou-se em imperativo e o presente vivo adormeceu numa repetição entorpecida.

É uma pena ver vocês girando em círculos, repetindo sempre as mesmas fórmulas antigas, dizendo as mesmas coisas, almoçando e jantando nos mesmos lugares. Parecem bem orientados, mas não se enganem pela elegância do movimento circular, vocês estão perdidos, se guiam por um tempo idealizado, onde a alegria era plena e, como vocês mesmos dizem, “tudo estava em seu lugar”. Pois bem, antiquados amigos, não veem que esta tara pelas tradições já foi longe demais? O passado, quando levado muito a sério torna-se uma doença que paraliza. É triste ver como sua qualidade tornou-se seu maior defeito. Prestem atenção, pois o diagnóstico é um só, vocês sofrem de excesso de história e a contaminação precisa ser contida. Basta olhar para os sintomas, o seu presente tornou-se uma repetição alucinada dos gestos de seus antigos heróis, vocês deliram com grandes navegações, soldados romanos e guerreiros vikings. Seu excesso de memória infecta o cotidiano, obscurece o olhar, e tira a força das ações.

Ora, vocês argumentam que os antigos heróis não podem ser esquecidos, e se esforçam para proteger o que acreditam ser os pilares da sociedade. Eu entendo, queridos tradicionalistas, e compartilho de sua preocupação em proteger o que foi, mas para isso é necessário levantar muros tão altos contra a atualidade? Eu vejo o seu pequeno círculo, do qual vocês tanto se orgulham, praticar rituais de renovação, tentando expulsar todo o perigo do desconhecido e mantendo em seu interior apenas a mais absoluta pureza dos princípios e dos valores. Mas vocês querem limpar o que chamam de sujeira? Ou apenas querem varrê-la para longe de seus condomínios fechados? Suas sociedades compactuam com os novos tempos ou toleram a diferença apenas quando humilhada e afastada?

Escutem, meus temerosos reacionários, não percebem como estão paralisados? Eu acredito que lá no fundo vocês sabem disso, seu saudosismo o demonstra. Vocês não sabem mais como andar para frente, gostariam que seus castelos construídos nas areias do tempo se tornassem leves e fossem arrebatados em direção aos céus, mas é fácil ver como eles afundam na areia movediça. Sinto dizer, mas o que há de mais sagrado em vocês é na verdade a doença que se manifesta em sua fase terminal, prestem atenção: seus músculos estão rígidos, seus olhos estão vidrados, sua pele está esquálida. As ferramentas que vocês trazem do passado se quebraram pelo uso e não são as mais adequadas para os problemas do presente. Ah, e vocês ainda são petulantes o bastante para oferecer uma corda para nos tirar do buraco. Meus queridos nostálgicos, somos nós que hoje arrastamos vocês como um cão teimoso amarrado na carroça.

Como podem ainda hoje, no alto de sua arrogância, acreditar que o passado lhes concedeu um manual de práticas que deve ser imposto à humanidade? Vocês respondem que se tal conhecimento vem de tão dourada época, não há porque negá-la, muito menos questioná-la. Me digam então, quem foi que lhes agraciou com a cartilha dos bons costumes? Um rei ungido de óleos santos? Talvez Dom Pedro II, herdeiro legítimo da casa real de Portugal. Um patriarca guiado pela mão de Deus? Quem sabe Abraão ou Noé. Não, é necessário remeter tal sabedoria ao homem original, o próprio Adão, antes de ser corrompido pelas ideias subversivas de Eva. Meus caros retrógrados, vocês não percebem o essencial, o engodo no qual fizeram questão de cair. O seu passado parece ter acontecido antes do próprio tempo existir.

Eu conheço sua sina e talvez caiba a mim dizê-la: suas crenças estão mumificadas, é constrangedor notar como todos ao redor sentem o fedor cadavérico exalando de suas tradições. E por mais que vocês lutem para preservá-las, suas atitudes apenas pactuam com sua lenta deterioração. Amargos guardiões do passado, a sua história não serve de molde para o presente. Acredito que a sua sabedoria inscrita em pedra provavelmente foi útil no momento em que foi talhada, mas hoje, não mais, seus mandamentos passam longe de descrever a vida real, aquele tempo ficou para trás, seu saudosismo não passa do estertor final de uma crença moribunda, é grotesco ver como vocês nunca terminam de agonizar.

Eu sei, queridos decadentes, é difícil largar o passado, deixá-lo ir. O desapego é uma arte para poucos. Mas eu insisto, seu passado tornou-se pesado demais até mesmo para sua estirpe. Em seu medo do presente, vocês se trancaram nesta prisão escura, suas crenças são criptas fechadas a sete chaves, sua ideias são como caixões lacrados e a estátua de seus antepassados são como lápide com flores mortas. Claro, digo isso de maneira metafórica, trata-se apenas de um gentil apelo, um convite para superar as contradições em que vocês caíram, existe vida fora deste cemitério de tradições ultrapassadas.

Obstinados conservadores, eis a minha conclusão, se vocês se apegam ao passado com tal ardor, e repelem o presente com horror, então aqui não é lugar para vocês, a melhor alternativa talvez seja se refugiarem “naquele tempo” que não existe mais. Nós lhes reservaremos os museus para se tornarem o seu asilo final, perto de seus heróis, e eu prometo, através desta carta, que nós lhes daremos os melhores espanadores para seus rituais de purificação. Mas sinto muito, isso é tudo que podemos fazer no momento. O mundo mudou, as páginas da história continuam a ser viradas, muito mais rápido do que vocês sequer conseguem imaginar.

Diante disso, solicito que escolham se devemos continuar arrastando vocês com benevolência ou preferem que os deixemos em paz onde vocês sempre almejaram estar. Saibam apenas que o papel principal no tecer do tempo não está mais em suas mãos. As palavras são duras, eu sei, e peço desculpa se os peguei desprevenidos, mas peço que reflitam com serenidade e moderação. Fora isso, agradeço profundamente a atenção, em nenhum momento foi minha intenção ofendê-los, apenas ajudá-los nestes tempos tão confusos.

Sem mais, me despeço com o coração leve.

Atenciosamente, Rafael Trindade, filósofo ateu e psicólogo anarquista.

Sr. Garcia

Imagens de Sr. Garcia

Referências

  • Nietzsche – Sobre a Utilidade e a Desvantagem da História para a Vida
  • Mircea Eliade – Mito do Eterno Retorno
  • Bergson – Duas Fontes da Moral e da Religião
  • Cântico Negro – José Régio
  • Meninos Mimados – Criolo

Como citar

TRINDADE, Rafael. Carta Aberta aos Conservadores. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: https://razaoinadequada.com/2025/02/17/carta-aberta-aos-conservadores/ Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Celia Pecci
Celia Pecci
3 dias atrás

Maravilhoso!

José Fernandes porto
José Fernandes porto
1 dia atrás

Teoricamente parece perfeito! Já vive isso na prática? Séculos de história não são esquecidos num verão.