por Gabriela Jacques e Rafael Lauro
Somos todos manipuladores da linguagem. As palavras são encantos, e toda bruxa sabe disso. Por uma convenção léxica, dizemos que um amigo não é um amor. Você se senta à minha frente e diz: “acho que é melhor sermos apenas amigos”. Eu, versado nos feitiços da palavra, te respondo: “aceito o amigos, mas não o apenas.”
A palavra é uma amarração, dá contorno e pode constranger – ou, como contra-feitiço, libertar – o movimento. A pergunta é: como a forma que usamos as palavras amizade e amor delimitam a nossa afetividade? Quais movimentos essas palavras restringem, e quais poderiam libertar? Os manuseios da linguagem modelam a vida em novas formas – torcemos a matéria de que são feitas as palavras, porque nos encantamos pelos mundos que elas inventam.
Em nosso vocabulário relacional, as palavras amor e amizade significam coisas diferentes, mas se misturam de maneiras um tanto confusas. Às vezes a amizade é convocada para comunicar um término, às vezes para dizer que não há interesse sexual, às vezes é simplesmente um jeito carinhoso de chamar alguém. Afinal, qual é a relação entre amor e amizade? Para responder essa pergunta, precisamos fazer um recorte: dentro da norma a resposta é uma; fora dela, são outras.
A matriz da nossa sociabilidade funciona por um princípio de eleição. Uma única pessoa é eleita para ocupar a vaga central: a relação amorosa. Além de constranger o amor aos critérios da exclusividade, a norma também normatiza o que foge desse centro. A pessoa escolhida é colocada em primeiro lugar e deve ser priorizada sobre todas as outras. Isso faz com que a amizade apareça por derivação, em segundo lugar, como uma relação marginal, que não deve competir com a relação principal em intimidade, frequência, prioridade, sexo, paixão ou envolvimento. Em outras palavras, a normatividade que hoje conduz nossas relações amorosas empurra os amigos para a margem.
A amizade acaba se desenhando como “não-relação amorosa”. Uma definição negativa, isto é, uma ideia que surge pela negação de uma outra. Há quem deteste esse tipo de definição, em especial quando utilizada para demarcar identidades ou práticas (como nos casos da não-binariedade e da não-monogamia). Segundo os críticos, o problema dessas definições é que elas são pouco propositivas: ao usar uma definição negativa, você comunica o que não está acontecendo (como no enunciado “isto não é um namoro”), mas não descreve o que de fato acontece. O que essa crítica ignora é que o trunfo de definir algo negativamente pode estar justamente na abertura radical, pela qual dizemos apenas: eu não me encaixo no que se espera de mim, vamos descobrir juntos?
A normatividade impõe à relação amorosa uma série de regras, enquanto espera da amizade que cumpra uma só: não ser uma relação amorosa. Ou seja, em vez de optar pela abertura da negação, a monogamia se apropria da definição negativa de maneira coercitiva e, por meio de uma pressão constante, impede relações significativas de florescer. Uma hierarquia implacável se estabelece: a amizade precisa ocupar menos espaço que a relação amorosa. A não-monogamia, enquanto esforço de contestação dessa normativa, é antes de mais nada uma aposta no fato de que a amizade é onde mais podemos quebrar a rigidez das expectativas de uma relação amorosa. É uma forma de dar lugar para a força dessa negatividade que produz novidade, que faz da recusa da conduta compulsória um desejo de variação.
Assim, abandonar a lógica da eleição leva à redescoberta da multiplicidade. Existem inúmeras maneiras de viver uma amizade: podemos morar com amigos pela vida toda, não apenas durante a faculdade; podemos dormir de conchinha com eles porque é bom, não apenas quando vemos neles um romance em potencial; podemos contar com eles na difícil escolha de ter filhos; enfim, podemos muito mais quando não os empurramos para a margem. Não deixar uma única relação ser o centro permite à afetividade um caminho mais livre, que passa por todos os lugares. Onde quer que a alegria-mútua se apresente, ela poderá se efetuar como relação significativa, e dar lugar para sua existência singular na rede que constitui nossa vida com os outros.
Um dos efeitos da hierarquia no amor é a concentração das dependências em um só ponto. Espera-se que o escolhido supra tudo: companhia, interesse, humor, carinho, tesão, dinheiro, amparo, família, e por aí vai. Essa confluência de expectativas, junto às renúncias exigidas na rígida performance do amor, resultam em um solo fecundo para o ressentimento. Os problemas invariavelmente aparecem e, com eles, a vontade de romper. Não raro, os parceiros começam a se odiar1, mas permanecem juntos, porque o término é aterrorizante. Como poderia ser diferente? Se o que está em jogo é o centro que ampara tudo, fica muito mais difícil se separar. Assim, a relação continua de maneira precária até que se esgote – e então ambos saem destroçados, porque trabalharam juntos pelo sonho da fusão, mas acabaram sozinhos no pesadelo da dependência.
Nesse processo ressentido, o término acontece à sombra da ideia de que algo não vingou, e assim fica difícil transformar a relação. Por isso, o rompimento de um vínculo amoroso funda um tabu: o ex. Essa palavra de duas letras diz muito do nosso imaginário: o ex é alguém que foi, mas não é mais. Como, na perspectiva normativa, podemos ter muitas relações à margem, mas apenas uma no centro, a pessoa que ocupava essa vaga tem que sumir para que o cargo fique disponível. Em contrapartida, as amizades têm mais espaço para transformação. Desprendido da disputa por uma vaga única, um amigo pode deixar algumas funções sem deixar de ser amigo – alguém que vemos todos os dias durante a escola pode se tornar um amigo que encontramos uma vez ao mês sem grandes crises. No fim das contas, parece que as amizades marginais são vínculos mais seguros e duradouros do que os amores eleitos.
Qual é a alternativa, então, à afetividade centralizada? O imaginário monogâmico nos responde que onde não há centro, há vazio: quem não se funde a um par está sozinho. Essa ideia, porém, parte do pressuposto que descentralizar é perder algo; e aqui estamos propondo o avesso disso. Descentralizar não é forçar o encolhimento de uma relação. Também não é distribuir o foco em partes iguais. Abolir o centro fixo é permitir às múltiplas relações que cresçam livremente segundo suas diferentes intensidades e necessidades. A importância eleita, prescritiva e exclusiva sai de cena para dar passagem à importância orgânica, construída, elaborada no desenrolar de relações.
Fora de órbita, as amizades ganham vida própria. A distinção radical de valor entre amores e amigos começa a desaparecer, e o amor se multiplica em rede. As palavras que designam as relações perdem a sua força prescritiva, porque se torna mais importante o cultivo dos amores múltiplos e coexistentes, a partir da maneira singular como cada relação acontece. O mundo, porém, segue relegando a amizade ao segundo plano. Aos que não aceitam essa lógica, resta continuar com a bruxaria, e encantar as palavras. Assim, desviamos – ou enviadamos – a definição habitual de amizade, bagunçamos a hierarquia que ordena os vínculos amorosos – e aprendemos um novo feitiço, que diz: não quero ser apenas seu namorado, vamos ser amigos?
1 Muitas vezes o ressentimento se manifesta na imagem castradora dos parceiros – como a “patroa”, de quem os maridos reclamam enquanto vestem camisetas estampadas com um casal e as palavras “game over”.
Referências
Sentenças Vaticanas, Epicuro
Desafio Poliamoroso, Brigitte Vassalo
Introdução à Lógica, Irving M. Copi
Mil Platôs, Introdução: Rizoma, Deleuze e Guattari
Licorice Pizza, Paul Thomas Anderson