Então, Jesus lhe perguntou: ― Qual é o seu nome? ― O meu nome é Legião — respondeu —, porque somos muitos” – Marcos 5:9-13
Toda semana o paciente começava a sessão da mesma maneira: “Eu não sei o que dizer, sinto que vou me repetir”. O terapeuta, na voz mais acolhedora possível, dizia que não tinha problema, bastava começar. Encorajado a falar, as mesmas palavras saíam da boca do analisando, praticamente no mesmo ritmo e sequência da semana passada. E assim, o começo das sessões conservava esta fórmula: o paciente repetia seu discurso enquanto o terapeuta se colocava à espreita, com os ouvidos atentos, para perceber pequenas vibrações subjacentes.
Assim como o jazz encontra na repetição do tema musical uma razão para improvisar, a terapia se utiliza das repetições cotidianas como base para a diferenciação e o gosto pela criação. Podemos chamar isso de escuta em ritornelo. A palavra vem do italiano e remete a um refrão, ou ao trecho de uma canção que se repete. A ideia vem da teoria musical, é o nome do símbolo na partitura que indica a repetição de um determinado trecho da música. Mas Deleuze e Guattari transformam este termo num conceito filosófico, um de seus favoritos. E cabe a nós transportá-lo para a clínica.
A escuta em ritornelo se faz em três momentos:
Primeiro, do caos do mundo lá fora se constrói um território. Escutar é deixar-se conduzir, é ser levado pelas palavras do paciente, é ser apresentado à sua cidade subjetiva, onde ele tem domicílio. A primeira coisa que a escuta em ritornelo faz é habitar um território em torno de um eixo. Ora, se os músicos fazem isso quando carregam consigo um diapasão, o mesmo vale para a fala, que passa pelas mesmas notas e melodias.
É isso que Deleuze e Guattari querem dizer quando descrevem a criança no escuro se tranquilizando ao cantar uma cançãozinha. Se a melodia acaba, a criança recomeça, faz isso para manter a calma, se sentir segura, sustenta a melodia com o mesmo medo de um desenho animado que, se olhar para baixo, teme cair no abismo. O eixo fixa um território e impõe um limite ao caos, que protege o interior do exterior.
É por isso que o psicólogo diz: “você pode falar o que quiser aqui, é um espaço seguro”, o consultório de tons pastéis e meia luz oferece um lugar onde a fala pode recomeçar. A segurança do consultório protege do caos, e torna-se um dos poucos lugares onde a pessoa pode chorar sem sentir vergonha. O espaço, mesmo que limitado, se organiza em torno de um fundamento. Assim como criança cantando, o paciente encontra o seu ritmo, sua melodia que funciona como abrigo dos perigos.
Depois do refrão bem estabelecido é comum se lançar numa improvisação. Entretanto, improvisar é ir ao encontro do mundo, é abrir-se para suas intensidades, é confundir-se com ele. Neste segundo momento, se abandona o centro deste agenciamento territorial e se parte em busca das margens, onde se encontram outros agenciamentos. Este movimento alcança a fronteira de novos territórios. Na clínica é a bela arte da associação livre que toma conta. O falar sem saber onde se vai chegar leva a lugares inusitados.
Se no primeiro momento havia uma vontade de entender, neste segundo, parece existir um desejo de desentender-se. Em outras palavras, se a fala começa sob a máxima apolínea do “conhece a ti mesmo”, agora é Dioniso quem diz “desconhece a ti mesmo”. O regime de forças que constitui o ritornelo cria ressonâncias com o mundo exterior e o próprio movimento conduz para uma abertura. Ora, mas como pode a repetição monótona dar vazão à diferença? Como pode o consultório fechado tornar-se um lugar onde os mais variados fluxos atravessam?
Pois bem, é o terapeuta que incita o paciente a ir mais longe, tentar olhar mais fundo, até ver o que o abismo tem para dizer. Cada desvio, cada lapso, cada falha são recebidos como se fossem um convite. Ao tropeçar em seu próprio discurso, caminhos novos se abrem. Num dado momento, a força centrípeta transforma-se em força centrífuga, e o paciente que antes se segurava agora pede para ir mais longe. É então que a repetição se torna apenas a ocasião para recomeçar, e passa a estar em função da diferença. A repetição torna-se agora uma potência capaz de produzir saídas e o território que era um abrigo seguro transforma-se em fronteira, permeada de entradas e saídas.
O ritornelo na escuta tem este objetivo, multiplicar vozes, fantasias, sonhos e desejos. Agindo através da escuta aguçada, ouvindo os sussurros, os silêncios, os não ditos. Decompondo palavras e procurando sentidos, o terapeuta consegue encontrar vibrações novas, pequenas variações que passariam despercebidas para o ouvido desatento. A escuta em ritornelo ganha a função de catalisador, pois aumenta a velocidade e profundidade com que a fala se manifesta e encontra interações entre elementos aparentemente desprovidos de afinidade inicial.
O analisando pouco a pouco incorpora esse novo mundo de intensidades puras que se abre, e é hábil o terapeuta que consegue respeitar este tempo de elaboração. É muito importante compreender até onde o corpo pode ir, pois há sempre o risco de perder-se, de ir longe demais. Por isso um terceiro momento na escuta em ritornelo. Agora é hora de voltar, mas não para o mesmo lugar. Da mesma forma que no jazz o tema em que se começa não é o mesmo no qual se termina, a reterritorialização é feita num novo eixo. A intensidade dos fluxos não permite ao círculo fechar-se sobre si mesmo, ele permanece aberto para novas experimentações.
Estas três fases da escuta não são consecutivas nem ordenadas. Funcionam muito mais como ora isso, ora aquilo, ora aquilo outro. Em outras palavras, não são fases, são ênfases. Ora precisaremos de um eixo fixado, bem demarcado para nos proteger; ora precisaremos recorrer a uma desorganização, uma flexibilidade experimental, uma expansão de limites; e ora precisaremos voltar, assentar-se num novo espaço, que nunca será o mesmo do ponto de partida. E deste modo, a sessão que sempre começa no mesmo lugar, pode terminar em outro, às vezes mais perto, às vezes mais longe, mas sempre num lugar ligeiramente novo.
¹ “Criamos ao menos um conceito muito importante: o de ritornelo” – Deleuze, Abecedário
Referências
- O Palhaço e o Psicanalista – Christian Dunker e Claudio Thebas
- Uma Folha Antiga – Kafka
- Acerca do Ritornelo – Deleuze e Guattari – Mil Platôs Vol. 4
Como citar:
Lindo texto! muitas reflexões por aqui, grata!