Em meus solilóquios, sai um não sei a cada duas frases.
É de manhã, estou sozinho, sentado na cozinha, são nove horas e três minutos, estou tomando um café, fumando um cigarro e falando comigo mesmo, me sinto sozinho, assumo com alguma tristeza, mas logo emendo: até que gosto dessa solidão – alguns segundos de silêncio preparam um sonoro “sei lá”. Levanto, caminho até o escritório, sento ao computador e transcrevo essa cena, não sei também o porquê. A vontade de escrever me aparece dessa maneira, como o sentimento de que experimento algo que não é só meu, que não é só “eu” – como se dentro de mim vibrassem vozes distintas, ansiosas pelo confronto com o papel. O texto é uma prova a que lhes submeto, metendo as ideias num ringue, em torno do qual assisto eu me debatendo comigo. Estou dentro e fora. E vocês, leitores-ouvintes, são meus cúmplices, uma projeção espectral das minhas próprias exigências ou ignorâncias. Não sei. De toda maneira, sigo escrevendo. São nove e vinte e sete, e continuo com a sensação de que tenho algo a dizer, mas o quê? O estômago dói um pouco, eu sei que não deveria fumar, nem tomar café preto de estômago vazio. Ainda assim, foi isso o que fiz. A chuva tamborila a veneziana e, acompanhado desse som, o silêncio se adensa. Sinto que ele se acumula ao meu redor quando paro de escrever. Então volto a bater os dedos nas teclas, o som das letras me acalma. A voz da palavra me acalma. Ao mesmo tempo, a necessidade de escrever me angustia. Sou movido por essa contradição. Escrevo e apago; escrevo e apago. Pensar é um risco, escrever o que se pensa é dobrar a aposta. Eu sei o que eu quero. Estar sozinho e também acompanhado. Não é isso que faço ao escrever? Talvez eu tenha começado este texto para me sentir menos sozinho, ainda que eu precise estar só para escrevê-lo. Nove e quarenta e quatro. Estou atrasado em tudo. Não sei o que é que eu vou almoçar, tenho aulas para preparar e mensagens para responder. Mais um trago. Eu deveria parar de fumar. Deveria, o futuro do pretérito não é suficiente para que eu pare. Eu devo, mas dever é um verbo pesado. Eu gostaria de parar, mas eu também gosto de fumar. Sei lá. Voltamos ao começo. Tenho a sensação de que eu nunca saí do começo. A ilusão de ter escrito estas linhas talvez me ajude a enfrentar essa insuficiência. Contam quatrocentas e trinta e duas palavras neste momento. É alguma coisa, tenho que admitir. Só não sei para quê serve. Um minuto, preciso ir ao banheiro. Voltei. Enquanto eu estava lá, um demônio me atacou. Pulou sobre mim, e cuspiu uma pergunta: “o que você está fazendo da sua vida?”. Ele sabe que eu não sei. Algumas palavras atrás precisei pesquisar em que tempo estava o verbo deveria, eu não lembrava. Que sei eu? O que consigo dizer é que neste momento estou aqui, sentado ao computador, nesta terça-feira turva, montando este quebra-cabeça de barulhos mentais. Sinto algum prazer, mas também muito medo. O que vai ser deste texto? Desculpe, acho que não é sobre o texto. Estou falando da minha vida. Não sei o que será dela. Deslizo a seta até a barra de tarefas: dez e nove. Preciso começar a pensar no almoço. Arroz, feijão, espinafre, batatas… sinto que sobrevivo no meio de um trânsito caótico de ideias que às vezes me atropelam. Acho que isto aqui é um autorretrato, ele se chama “rafael estatelado”. A chuva apertou, dez e dezesseis. Tenho pensado que eu preciso me hidratar melhor, um momento, vou buscar um copo d’água. Estou de volta, mas tenho que ser sincero: eu não queria voltar. Dei voltas em torno de mim mesmo lá na cozinha. Mas voltei, estou aqui, e não sei como continuar, mas continuo. Onde eu estava? É ridículo fingir que eu sei. É junho, virou o mês, e isso significa que eu tenho muitas contas a pagar. Ri alto ao pensar como os números têm poder. Um mundo movimentado por cifras guardadas em cofres digitais, é ridículo. Mas ao lembrar da soma na minha conta bancária parei de achar graça. Nossa, já é junho. Fechei um pouco os olhos, apoiei a cabeça na mesa, e fiquei assim por um minuto ou dois. São dez e trinta e três. Estou a horas sem olhar o celular, devo ter muitas mensagens para responder. Percebo que este texto me sequestrou, estou preso nele. Sinto que só vou conseguir voltar às coisas quando encontrar uma saída. O problema é que não serve qualquer uma. Não posso simplesmente escrever “tchau, até logo”. Vocês não desculpariam a impertinência. Olho para o teto, impaciente. Onde é que eu fui me meter? É uma promessa, não é? Um pacto feito junto a vocês. Seria ruim, se eu não o tivesse feito por amor. É verdade, não estou exagerando, saber que estou agora mesmo sendo lido é algo que me faz sentir menos sozinho. Eu não poderia deixar de amá-los. Ai, talvez vocês estejam pensando que eu estou procurando uma rota de fuga, uma brecha afetiva e barata para dar o fora. Olha lá, ele vai falar qualquer coisa bonita e escapar em reticências. Não vou, deixa eu recomeçar… Eu sentei aqui com o plano de escrever sobre o recorrente não sei que me sucede como um soluço a cada duas frases. O problema é que o planejamento foi pelos ares. Eu levantei voo e me perdi. E agora como pousar? Como voltar a pensar nas batatas, enfrentar os demônios, parar de fumar, beber água, pagar as contas, responder as mensagens? Acho que eu prefiro ficar aqui mais um pouco, só mais um pouco. Dez e cinquenta e seis. Eu poderia inventar uma regra arbitrária, tipo terminar às onze em ponto, mas acho que isso é obsessivo demais até mesmo para mim. Talvez seja melhor eu parar de falar sobre o fim do texto, deixa ele vir. Afinal, nunca dá pra saber quando uma coisa começa e quando ela termina. O início e o fim são categorias metafísicas, pensáveis apenas por convenção. Eu não comecei este texto ao escrever a primeira palavra e também não vou parar de pensar nele na última. Tenho a impressão de que pensar é um tormento indispensável. Se levo qualquer ideia – mesmo a mais inofensiva – às últimas consequências, acabo obrigado a confessar que não sei. Estou confinado dentro de limites bastante estreitos, o que não significa que o saber me seja inútil. Eu sei, por exemplo, que horas são: onze e nove. Na verdade, não sei que horas são aí agora, no momento em que vocês me leem. Não sei nem se vocês estão me lendo ou me ouvindo. Mas eu sei que vocês estão aí. Quer dizer, eu acho que sei. Acho que sei. Eu não sei. Estou sozinho? Talvez.
Rafael, eu precisava. Agora já não, porque já te li. Nestes últimos dias, me perdi um pouco de mim, e tu me deste o caminho do reencontro. Preciso tomar café, olhar pela janela e verificar os pratos dos gatos, limpar a areia. E voltar a escrever.
Que coisa boa de ouvir, Neli. Obrigado e boa escrita 🙂
Visceral! Mais, mais, mais !