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Nada que dura permanece o mesmo. A vida nos persegue com essa sina: tudo o que é bom acaba por terminar. Mas, relutantes, nós dirigimos esforços para fazer do fim um recomeço. Para continuarem boas, as relações dependem dessa força que faz chacoalhar as tristezas que se assentam conforme o tempo passa. O que é difícil é aceitar que, mesmo capazes de mudar, nós não conseguimos preservar tudo o que antes era bom, que sempre foi bom, mas agora já não é mais. Para reinventar a convivência é preciso endurecer um pouco o coração: não fazemos isso à toa, fazemos porque já não sabemos mais o que fazer, senão encarar o fato de que as coisas precisam mudar para a alegria retornar.  

O Razão Inadequada é consequência de uma amizade. Um fruto doce e híbrido – nascido de um abraço entre as raízes – da relação de dois amigos que convivem há quase trinta anos. Nós estamos aqui para dizer que precisamos mudar, não porque a relação terminou, mas justamente porque ela precisa mudar para não terminar. No que diz respeito a nós dois, estamos cuidando disso, e não faz sentido trazer à público os desentendimentos. Nossos projetos conjuntos, porém, dependem mais do que nunca desse processo de elaboração coletiva – e por meio deste texto viemos pensar junto com vocês.

Isso que temos a sorte de fazer todos os dias trata-se de um sonho compartilhado. Sabemos da importância desse trabalho para tantos de vocês que nos acompanham – não vamos deixá-lo parar. Ao contrário, acreditamos que as mudanças vão fazê-lo crescer. No entanto, não podemos negar que algumas coisas vão mudar a ponto de deixar saudades. Ainda não é hora de entrar em detalhes, porque não sabemos o que essa mutação vai fazer de nós. O que sabemos com alguma certeza é que nosso projeto vai deixar de ser apenas dos Rafaéis. O Imposturas Filosóficas, por exemplo, traz como subtítulo: “toda sexta-feira dois amigos se reúnem para conversar e pensar juntos”. Ora, retiremos o dois do começo da frase, e o que acontece?

Não sabemos, mas esta é a proposta, ou melhor, é a aposta. Estamos respaldados pela nossa definição predileta de filosofia: um diálogo transversal que parte da afinidade com algumas questões e estabelece relações de amizade entre pessoas de tempos e lugares diversos, construindo-se no presente como uma comunidade de pensamento. Quando tomamos contato com uma pessoa que se faz perguntas abertas, e que tem a ousadia – ou insanidade – de propor respostas, dedicando a elas a força de suas maiores certezas, somos convocados a uma aliança de sensibilidade, que pode promover uma mudança radical na maneira como vivemos. 

Para dizer de outra maneira, a filosofia não é uma meditação solitária nem um debate frígido, é um acalorado processo de implicação no pensamento dos outros, que nos aproxima de pessoas dispostas a fazer o mesmo. Assim, poderíamos dizer que pessoas filósofas são aquelas que fazem do pensamento um passo para o laço. Ao longo de todos esses anos, vimos esse esplendor acontecer: mais do que pagar as contas, mais do que aprender conceitos, nós presenciamos o florescimento de novas amizades, entre nós e também entre outras pessoas, a partir da nossa pequena comunidade e seu gosto por pensar. 

Temos encontrado muita gente por aí que conta como os nossos textos, conversas e grupos serviram de mote para novos encontros. Assim, nós temos a sorte, mas também a responsabilidade, de ser porta-vozes de uma alegria que se multiplica. Essa responsabilidade, porém, pesou sobre a nossa relação, a ponto de precisarmos reinventar o espaço para juntos manter o passo. Não adianta insistir em manter as coisas como estão quando a repetição não é mais capaz de produzir aquilo antes a justificava. Em suma, assim como cada um de nós, o trabalho já não pode permanecer o mesmo. 

A definição de filosofia como comunidade de pensamento coloca a primeira diretriz dessa mudança: pretendemos trazer os amigos mais para perto. Queremos mais vozes para compor o nosso coro, e também mais braços para dividir o peso. Graças ao trabalho com filosofia, conhecemos muitas pessoas com quem gostamos de pensar, e agora estamos estendendo o convite para que elas tomem parte, escrevendo textos, participando de programas, propondo encontros, entre outras possibilidades. Várias dessas vozes já são conhecidas de vocês, ouvintes, elas têm passado por aqui com alguma frequência. Não vai ser fácil de organizar, mas já imaginamos o prazer que será compartilhar essa convivência.

A segunda diretriz decorre de uma diferenciação, e se apresenta como uma necessidade de espaços independentes para nós dois. Boa parte dos nossos interesses mudou, e tem sido difícil dar vazão a essa diferença nos espaços compartilhados. Assim, nossa amizade requer tanto novas aproximações quanto novas distâncias, e fazer isso não é tão simples quanto parece: estamos começando por mapear os desconfortos, para então nos reposicionar em relação às demandas. Parece que, conforme dura uma relação, mais inflexível ela se torna, ainda mais quando envolve responsabilidade. Encontrar os pontos que podem ser flexionados não é fácil, requer tempo e cuidado. O que nos conforta é a certeza do carinho que temos um pelo outro – os novos caminhos serão ladeados por essa noção comum.

O que seria desse trabalho sem o coletivo que o sustenta? E não fazemos essa pergunta apenas em um sentido financeiro. Qual seria a graça de estudar, escrever, conversar, se não houvesse tantas pessoas com quem trocar? Enfim, chegamos novamente em um momento de tomar decisões, e de novo vamos confiar que o melhor caminho é o comunitário. Afinal, não existe filósofo no singular. O pensamento é polifônico, e o Razão Inadequada, mesmo antes, quando era feito apenas de nós dois, era já composto de muitas vozes. Para seguir, essa multiplicidade agora requer rearranjos: nós temos medo, mas nem por um minuto duvidamos da força que nos trouxe até aqui, e de sua capacidade de fazer dessa tristeza a ocasião para novas alegrias. 

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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