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Quanto do eu é feito de mim? Dizem que nos primeiros momentos após nascer e também nos últimos momentos antes de morrer, a resposta é nada. Se assim for, eu sou uma coisa que se diferenciou da matéria de que tudo é feito, e apenas pelo breve tempo de um punhado de anos. Não posso negar a consciência de ser um pouco diferente do resto, de ser uma superfície afetiva do mundo, um local pelo qual as coisas passam de maneira tal que minha existência se modifica, e eu percebo. Em alguma medida, sou distinto dos outros, mas é justamente sobre essa medida que se assenta minha dúvida: quanto do eu é feito de outro? 

Para tratar a questão com nuance, preciso deixar de pensá-la em termos binários. Sei que sou bastante diferente de uma pedra, mas não estou seguro em dizer que sou absolutamente diferente dela. Alguma porção de pedra se guarda em mim. Afinal, do pó eu vim, e a ele retornarei. Assim, as perguntas sobre a distinção do eu dependem de uma gradação. Sou mais eu em relação às pedras do que aos animais; mais eu em relação aos animais do que a outras pessoas; mas onde chego quando sigo adiante por meio desse raciocínio? Existe algum tipo de relação onde sou quase nada eu? Se a relação entre eu e outro pode ser pensada num espectro, então no extremo deve haver uma indistinção. Onde ela se dá?

Talvez seja esse o lugar a que chamo de amizade e também de amor. Dentre as diversas relações que estabeleço com o mundo, existem outros que não são tão outros assim, e não porque sejam iguais a mim, mas porque misturamos nossas partes de maneira tal que nossos limites se confundem. Quando penso em algumas destas pessoas, posso dizer que sou feito também delas: sou uma colagem de gestos e ideias que não são exatamente minhas, apesar de se expressarem através de mim; sou o resultado de vivências costuradas junto aos outros, algo como uma colcha de retalhos, e não sei dizer onde ela começa e onde ela termina. 

Às vezes, quando ouço alguém que amo, sua voz se confunde com a de meus pensamentos, como se esse outro pensasse dentro da minha cabeça – ainda que esse não seja um bom jeito de dizer, já que evidencia a limitação de pensar a mim mesmo nos termos rígidos de dentro e fora. A mesma coisa acontece com o toque: algumas situações me fazem perder a noção de minha pele como limite que distingue interior e exterior. Essa confusão configura a amizade como zona mista, tanto quanto o amor como algo promíscuo. Em outras palavras, existem relações que me tornam menos eu, porque promovem uma mistura, e assim estilhaçam a ilusão de que sou o autor de minha vida, de que devo exercer essa autoridade para me sentir bem comigo. 

Quando admito que o que pensa em mim nem sempre sou eu, como posso ainda me considerar extraordinário? Ao perceber que sou feito dos outros, perco o acesso à imagem do eu como um recorte esplêndido do mundo. Talvez seja esse o motivo pelo qual tanta gente tema o envolvimento e fuja da paixão. Em certo sentido, amar é ser penetrado. E por isso não é fácil. Depende de uma certa cisão do eu, como uma abertura que traz o retorno ao estado de indistinção. Em outras palavras, experimentar o abandono do eu é assustador, porque guarda alguma proporção com a morte. Morrer enquanto vive, porém, traz também a perspectiva de um renascimento. 

Se tenho alguma razão nesta deriva, então posso supor que uma dificuldade de amar venha do medo de descobrir o que há de comum com os outros, pois essa comunhão faz desabar o edifício que organiza o mundo pela identidade. Quando me entrego ao amor, meus interesses se modificam, minha perspectiva se adultera, minhas ideias se questionam – a voz do eu enrouquece, e perde parte da sua capacidade de narrar a vida de forma coesa. Nesse sentido, o eu se defende do outro numa espécie de luta contra intimidade, tentando preservar sua diferença, se manter puro, resguardado da possibilidade de contaminação. A pergunta que me faço, porém, é contra quem eu devo me defender. A pessoa pela qual me sinto atacado – e de quem me defendo – talvez mostre mais o meu medo de me perceber outro do que qualquer outra coisa.  

Fato é que, sem a alegria do comum, não existe amor. Sem essa vulnerabilidade que me dispõe ao outro, me torno incapaz de encontrar a mim mesmo nele e, portanto, indisponível para que a relação tome um lugar significativo em minha vida. De maneira um tanto dramática, sinto que a relação amorosa faz morrer uma parte do eu, mas assim e, por isso mesmo, nasce o nós – nós, que nunca se resume a dois, pois é feito de mim, do outro e também da intersecção de nossos mundos e de todos os outros que nele habitam. Conforme o amor se multiplica e coexiste em diversas relações, me percebo como um contínuo de amores, e vejo se manifestar em mim os traços de todos que me compõem.

Boa parte de minha inconstância vem dessa estranha insistência em me entregar aos outros. Isso traz dificuldades. Para as pessoas que esperam que eu continue o mesmo, é desconfortável presenciar o gesto que incorporei, a ideia que me torceu, o movimento que agora imito, o novo interesse que me empolga, especialmente quando se evidencia que eles vêm de um outro. Sinto muito, não posso evitar de levar comigo um pouco dos outros, e seria ridículo disfarçar. Enfim, às vezes não serei eu a falar com você. Serei um outro amigo a te dizer, serei um outro amante a te beijar, serei outra pessoa a conversar – mas talvez o mais difícil mesmo é que, quando você falar comigo, às vezes eu serei você.

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Rosilene Carvalho
Rosilene Carvalho
9 horas atrás

❤️👏