Um belo dia você acorda e já não tem mais vinte anos. Tem trinta, quarenta, ou mais, e tudo o que você faz, você já faz há algum tempo. Escovar os dentes, tocar violão, comprar tomates, esticar lençóis, enfileirar letras – são partes de uma rotina que você nem lembra onde começou. Você adquiriu um jeito de ser, embora pudesse ser de qualquer outro. Além disso, é convocado a continuar sendo como é: seus interesses te definem, sua família te demanda, seu trabalho te limita, seus amigos te conhecem. Como adulto, você performa saber, mas continua com mais de mil perguntas sem resposta.
Costumamos pensar que a sabedoria cresce conforme o tempo. É o motivo pelo qual muitas vezes reverenciamos o ancião. Não dá pra negar que aprender é uma coisa que leva tempo, e que o passar dos anos traz mais experiências. Assim como é difícil discordar do fato de que um bebê sabe menos que um adulto; está pressuposto na ideia de maturidade algum tipo de saber sobre as coisas. No entanto, um belo dia você acorda, já não tem mais vinte anos, e não faz ideia do que está fazendo com a sua própria vida.
A isso alguns chamam de crise da meia-idade. (O que é engraçado, já que não podemos dizer onde é o meio de algo que não sabemos onde termina.) Você passou na escola, talvez tenha feito uma faculdade, arranjou um trabalho, talvez tenha se casado, pensa em ter o primeiro, talvez o segundo filho – mas vive assombrado pela ideia de que agora é isso: repetir, repetir, repetir até morrer. De tão estreito, o horizonte te apavora. Tudo o que você sente que pode fazer é tentar ser o melhor possível naquilo que já faz, e quando tenta falar sobre esse desconforto com os outros, te aconselham um novo hobby: “já tentou meditar? sabe o que é ótimo? cerâmica!” Você deita a cabeça no travesseiro de novo e de novo e sente que a vida – no final das contas – não é nada de mais.
Se você se sente assim, talvez seja bom se perguntar como era a vida no começo das contas. Não é preciso muito esforço para perceber como essa ideia de crise etária é conservadora: trata-se da falência de uma imagem. Nosso pensamento habitual sobre o amadurecimento é uma aposta reacionária, pois persegue uma ideia de felicidade alcançada pelo sucesso no trabalho, na família e no amor. Em outras palavras, tornar-se adulto é identificar-se a um modelo de sujeito que, por volta de certa idade, conquista a alegria, como um território pelo qual se move satisfeito. Agora, quando finalmente se vê insatisfeito no espelho, o homem – sim, o homem cis médio e branco – começa a culpar a idade.
Culpar o tempo por toda a angústia é uma desculpa eficiente, pois protege o homem contra o estilhaçar de sua própria imagem. Não é fácil para um adulto admitir que passou “metade” da vida perseguindo uma miragem. Então ele desvia, e programa a crise no calendário, como uma reunião de negócios consigo mesmo. (É isso que em tantos casos se chama de terapia.) Para ele, maturidade é ter uma espécie de planilha para lidar com os sentimentos e, por meio dela, adiar a crise para o ano que vem.
O afeto que predomina na crise dessa imagem é a frustração. O homem tem muita dificuldade quando o mundo não lhe entrega todos os privilégios que lhe foram prometidos. O macho tradicional reclama por meio da violência o seu lugar de poder, e tem superado suas crises dessa maneira: infelizmente não faltam lugares de reconhecimento para sua performance bruta. Por outro lado, há um tipo de homem disposto a questionar essa imagem. Ele tem pavor de ser visto como machista, mas fica muito frustrado quando não recebe um biscoito por ter feito tudo direitinho. Se a despeito de ter se comportado ele não é reconhecido como pai, patrão ou sabichão, entra em crise, e culpa a idade como forma de evitar a espinhosa ideia de que aquilo que persegue não lhe traz satisfação. Como poderia um homem assim assumir que, na verdade, trata-se de um problema de tesão?
A virtude é o prêmio da virtude. Em outras palavras, o tesão na vida é já seu próprio ganho, que em grande parte independe da conquista e do reconhecimento. Não é (apenas) sobre sexo, é sobre a força que movimenta e cria sentido. O que leva o homem à crise da meia-idade é sua expectativa de ser recompensado por repetir uma fórmula pronta, cuja eficácia foi prometida ao longo de séculos, e perceber que ela não funciona mais. Já pensou? Seguir os mandamentos da heterossexualidade masculina e viver num círculo social em que isso pega mal? “Como assim?”, reclama no íntimo o macho em desconstrução, “Eu não sou mesmo especial?” – o adulto maduro às vezes não passa de um menino mimado.
O homem sente vergonha porque chegou lá sem chegar lá. Ele pensa que deveria estar contente com sua vida, afinal fez tudo certo, mas o fato é que não está. Assim, a idade aparece como sintoma da crise, mas ela não é a causa que a produz. O que realmente faz alguém se sentir velho é a tristeza, a diminuição do querer – que na idade avançada até pode ser atribuída ao tempo, já que o corpo começa a ceder à pressão dos anos -, mas no adulto o problema está longe de ser esse. A crise da meia-idade é um mecanismo de defesa que o isenta de responsabilidade pelas próprias escolhas. Mais que isso, ao atribuir ao tempo a culpa por sua melancolia, o homem pode resolver a crise sem mudar nada. Envelhecer faz parte, não é? Resta aceitar.
Assim, a crise de meia-idade é uma crise que não se estabelece de fato. Ela encontra na estrutura um lugar para a tristeza, em vez de fazer dela um motivo para a mudança. Então, o adulto busca recuperar a satisfação sem mudar nada de significativo, e reorganiza a superfície sem modificar as raízes. O que ele chama de maturidade é sua disposição de continuar fazendo as mesmas coisas, a despeito das dificuldades, respeitando a normalidade, enquanto muda a cor das paredes, mas não a estrutura da casa. Olhar a tristeza nos olhos exige coragem, mas quanta coragem não é preciso para continuar repetindo a vida conformada? Administrar a crise é o que o homem maduro faz, e assim ele consegue continuar vivendo, embora muito muito pouco vivo.
Referências
20 anos blue, Sueli Costa e Vitor Martins, Elis Regina
Apartamento em Urano, Paul Preciado
Ética, Espinosa