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O esquizoanalista não é um intérprete, e muito menos um encenador; ele é um mecânico, um micromecânico. Não há escavações ou arqueologia no inconsciente, não há estátuas […] trata-se de saber quais são as máquinas desejantes de alguém, como elas funcionam, com que sínteses, com que entusiasmos, com que falhas constitutivas, com que fluxos, com que cadeias, com que devires. Do mesmo modo, esta tarefa positiva não pode separar-se das destruições indispensáveis, da destruição dos conjuntos molares, estruturas e representações que impedem a máquina de funcionar” – Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 449

Deleuze e Guattari chegam na tarefa positiva com uma pergunta central: quais são nossas máquinas desejantes? Aqui se mostra definitivamente uma maneira bem diferente de pensar e atuar sobre o inconsciente. Se de um lado está o psicanalista, que pensa o inconsciente como um teatro, com personagens interpretando um roteiro determinado; do outro lado está o esquizoanalista que pensa o inconsciente como um encanador, com canos onde por onde fluem os fluxos de desejo.

A psicanálise pensa o inconsciente como um lugar escuro e assustador, com fantasmas e monstros; enquanto o esquizoanalista pensa o inconsciente como uma fábrica, sempre aquecida demais, iluminada demais, a ponto quase cegar (por isso os operários usam máscaras e capacete de proteção). Se o psicanalista trabalha como um arqueólogo platônico, através de imagens refletidas no fundo da caverna; o esquizoanalista atua como um vulcanólogo, pois sabe que abaixo da superfície existem galerias, sim, mas repletas de lava incandescente.

Durante muito tempo a psiquiatria foi uma disciplina normativa, falando em nome da razão, da autoridade e do direito, numa dupla relação com os asilos e os tribunais. Depois veio a psicanálise como disciplina interpretativa: loucura, perversão, neurose; procurava-se descobrir o que isso ‘queria dizer’, por dentro. Hoje, reclamamos os direitos de um novo funcionalismo: não mais o que quer dizer, mas como isso marcha, como isso funciona. É como se o desejo não quisesse dizer mais nada e fosse um agenciamento de pequenas máquinas, máquinas desejantes, sempre numa relação particular com as grandes máquinas sociais e as máquinas técnicas. E quanto a você: ‘Que são suas máquinas desejantes?’” – Deleuze, Ilha Deserta

Ou seja, não importa mais saber o que o inconsciente está tentando dizer. Definitivamente o que interessa não é “O que isso significa?”! Na verdade, o inconsciente não fala, não pensa com a linguagem que nós utilizamos, ele segue outra gramática (ou talvez nenhuma). O objetivo é deixar para trás o inconsciente estruturado como uma linguagem, para pensar por onde o inconsciente escorre, ao que se liga. O que conta para Deleuze e Guattari é o que escapa disso, o que faz fugir desta maneira de pensar e encontra novos agenciamentos.

É a própria forma da interpretação que Deleuze e Guattari afirmam ser incapaz de atingir o inconsciente. Ela está viciada, não consegue pensar o recalcado senão através do próprio material recalcado, introduzindo falsas imagens e falsas tendências do inconsciente. Isso se dá por causa dos usos ilegítimos das sínteses (ver inconsciente maquínico), que obriga o inconsciente a trabalhar de maneira artificial. O inconsciente não tem nada para representar, não tem nada para falar, a não ser que um aparelho repressivo o obrigue a isso.

Por isso – à moda do “O que pode o corpo?” – é tão importante resgatar a pergunta: “Quais são as suas máquinas desejantes?”. E é notável que a pergunta seja no plural e não “Qual a sua máquina desejante?”, porque o inconsciente funciona de modo plural, mergulhado na multiplicidade. Não se deve renunciar a Édipo para continuar no Falo unitário despótico. Toda a questão, com esta provocação, é fazer a multiplicidade florecer

A esquizoanálise procura desfazer o inconsciente expressivo edipiano, sempre artificial, repressivo e reprimido, mediatizado pela família, para atingir o inconsciente produtivo imediato. Sim, a família é um estímulo — mas um estímulo de valor qualquer, um indutor que não é organizador nem desorganizador”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 135

Queremos explorar o inconsciente, mas não o metafísico, e sim o transcendental. Não operando com paralogismos, mas sim com seu funcionamento legítimo. Deixamos de lado o inconsciente ideológico para encontrar o materialista, deixar o figurativo para encontrar o maquínico. Ou seja, se o inconsciente é produtivo, o tempo todo produtivo, isso significa que ele está configurado de maneira a sempre produzir fantasmas, sempre produzir as mesmas imagens. As máquinas desejantes destroem esta maneira de funcionar.

Sempre voltamos às sínteses, e a pergunta agora é: que sínteses são realizadas com as máquinas parciais? Quando se pergunta pelas máquinas desejantes, há um retorno, um passo para trás, onde erramos? Deleuze e Guattari têm um palpite: a tarefa mecânica da esquizoanálise procura reverter todos os usos ilegítimos das sínteses do inconsciente! Há uma determinada configuração do desejo, um determinado modo do desejo circular pelo corpo e pelo campo social. Tudo está aí! É aí que o esquizoanalista deve atuar!

A primeira tarefa positiva consiste em descobrir num sujeito a natureza, a formação ou o funcionamento de suas máquinas desejantes, independentemente de toda interpretação. O que são as suas máquinas desejantes? O que faz você entrar nelas? O que faz você sair delas? Como isso funciona? Quais são os seus sexos não humanos? O esquizoanalista é um mecânico, e a esquizoanálise é unicamente funcional” – Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 426

Aqui é possível ver como a luta de Deleuze e Guattari implicam em uma nova maneira de atuar na clínica. O que faz alguém se empolgar com a vida? O que faz alguém desistir dela? É tudo funcional, ou seja, uma coisa está em funcção da outra, ligada à outra, operando sínteses com outras. Esta é a maneira como o esquizoanalista está preocupado com a prática. O que ele faz é se perguntar o tempo todo “como isso funciona?”, “Quando isso acontece, o que acontece depois?”, “quando você faz isso, o que estava acontecendo imediatamente antes?”. Aqui estão as possibilidades clínicas. Por isso um esquizoanalista carrega consigo pregos, martelo, fita métrica, chave inglesa, serrote, porque ele atua no real, cola, corta, lixa os fluxos de real. Claro, ele precisa atuar com presteza e cuidado, não quer derrubar a casa por imprudência ou excesso de pressa. Mas trata-se antes de mais nada de um trabalho prático.

O esquizoanalista é um mecânico, sim, é para isso que ele serve, a esquizoanálise é unicamente funcional. As máquinas devem ser compreendidas em seu funcionamento apenas para serem desarranjadas e redispostas! Os objetos parciais precisam desfazer seus fluxos fechados e abrirem-se para o fora, efetuarem novos encontros. Os objetos parciais até agora interpretados como parte de um todo são abertos para possibilidades criativas. Não há uma totalidade por vir, nem perdida, há apenas maquinações. Não há Éden nem julgamento final, apenas conexões de desejo. Ele passa pelos órgãos, e a tarefa do esquizoanalista é entender estas operações.

Somente mecanicamente é que se torna possível descobrir suas máquinas desejantes, seu funcionamento: é preciso apertar e soltar parafusos. A ferrugem das máquinas são as representações que impedem seu livre funcionamento! É preciso ficar com os ouvidos atentos, estar à espreita, ouvir o desejo fluindo pela realidade das conexões, disjunções e conjunções.

Certo, mas como descobrir as máquinas? Resposta curta: Experimentação e Prudência. Resposta longa: encontrando as relações funcionais entre as máquinas desejantes parciais e operando sobre elas. As técnicas da esquizoanálise são todas pensando nisso. Os encontros em Espinosa, as transvalorações em Nietzsche, a criação de um corpo sem órgãos ou a efetuação de um ritornelo. São muitas as camadas em que um esquizoanalista opera. Ele vasculha de cima a baixo, procurando pelo sapato do pai que impede as engrenagens de rodar, ele encontra o anel de casamento da mãe que trava as engrenagens, impedindo seus fluxos.

Experimentação se faz na busca de que acontecimentos interfiram nos fluxos, para que a diferença seja convidada a se expressar. A experimentação é a abertura para o novo, para o inusitado, para o improvável, para a diferenciação. Sem a experimentação não haveria esquizoanálise, pois ela busca novos encontros que gerem novos afetos que movam o sedentário do lugar. Apenas um afeto pode vencer outro afeto? Então a única chance de cura é experimentar para compreender quais são as máquinas desejantes que atuam neste agenciamento. Sem a diferenciação, a esquizoanálise não seria possível.

Mas também seria necessário adicionar a prudência na fórmula. Por quê? Porque sem prudência se corre o sério risco da experimentação perder a consistência. Se a máquina se desarranjar com muita força, ela perde a capacidade de criar. A prudência mantém as condições seguras de experimentação.

É tudo, no fim das contas, uma questão de desterritorialização: através da tarefa destrutiva ocorre uma desterritorialização, através da primeira tarefa positiva, ocorre uma reterritorialização, com o descobrimento de uma nova maneira de funcionamento das máquinas desejantes. É, antes de mais nada necessário uma destruição, um afrouxamento, uma dispersão, para notar que as máquinas desejantes são pré-individuais, que a identidade e a estrutura é imaginada.

O essencial desta tarefa é assegurar que as forças liberadas com a destruição das máquinas edípicas se transforme em algo que crie caminhos novos. Ao desfazer o bloqueio das máquinas, elas passam a liberar fluxos esquizo, isso é perigoso em vários sentidos. Por isso, o cuidado é de fazer as máquinas desejantes voltarem a funcionar dentro de sua natureza legítima. Como nossas máquinas desejantes funcionam? Elas estão organizadas de modo da nos afastar daquilo que podemos? Ou elas se organizam de maneira revolucionária? As máquinas podem se tornar parte dócil de um todo, ou adquirir uma configuração infernal de produção revolucionária! Tudo depende as conexões, disjunções e conjunções!

A tarefa positiva lida com o lento processo de fundação de um território. É aqui que se encontra uma terra nova! Uma nova maneira de afetar e ser afetado! Uma transvaloração dos valores! Uma Ética-Estética. A esquizoanálise se mantém fiel aos filósofos da imanência. Este movimento leva para  última tarefa, onde as máquinas deixam de ser sujeitadas e passam a ser sujeitas. Deixam de operar num nível molar e previsível para funcionar num nível molecular e imprevisível.

Escapar da armadilha edipiana, entrar em campo aberto, voltar a fazer as máquinas desejantes funcionarem a pleno vapor, encontr uma zona de intensidades. Deleuze e Guattari querem que cada um descubra em si a natureza dos investimentos libidinais do campo social, a relação com os investimentos pré-conscientes. As máquinas desejantes fazem conexões em todas as direções, elas encontram as saídas escondidas para a repressão do desejo. Elas voltam a funcionar de modo revolucionário na sociedade. Se isso não é cura, nada mais poderá ser.

Texto da Série:

Esquizoanálise

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Edson Gonçalves Filho
Edson Gonçalves Filho
9 anos atrás

Defendi um trabalho de pesquisa sobre ‘A Micropolítica da Criação: esquizoanálise de práticas de resistências’ na UFRN. Lembrei do fato. Apliquei o método no campo para saber quais eram as máquinas desejantes dos grupos que circulavam pelo setor de aula II. Muito provocante. As perversões, as neuroses, enfim, as doenças mentais. Na modernidade são poucos os autores que quebram com o familiarismo de Édipo. É muito importante a análise proposta por Deleuze e Guattari, pois, eles quebram com a história papai-mamãe e abre uma fenda na ferida.

Vunus Bunus Canis
Vunus Bunus Canis
9 anos atrás

Muito interessante. Um debate dialógico e tanto a se fazer. Começando pela postagem de Edson Ferreira Filho, como experimentador da denominada “máquina desejante”; em trabalho de pesquisa sobre ‘A Micropolítica da Criação: esquizoanálise de práticas de resistências’. E na UFRN! Passando visão na identificação, quem é Rafael Trindade, dizendo-se “Artesão de mim, habito a superfície da pele, atento para o que entra e sai”. (O que tem então sob a superfície da pele? Seria a outra “aura”?) Enfim, profusamente debater ponto por ponto para contestar e entender o que propõe como verdade esse corajoso filósofo, Rafael Trindade. Sem intencionar texto… Ler mais >

Edson Gonçalves Filho
Edson Gonçalves Filho
Reply to  Vunus Bunus Canis
9 anos atrás

No meu trabalho faço esquizoanálise das máquinas microfascistas e macrofascistas disponíveis no local de análise, passando da forma molar para a molecular; do desejo de castração e de criação. A família enquanto núcleo asilar morre no período neolítico. A sagrada família a partir daí é recalcada. Édipo como simbolo do recalque. Os corpos são agenciados para a guerra promovida pela máquina Estado nos seus meandros paranoicos. O pendulo nunca pára de oscilar entre o desejo de vingança, morte, crueldade, esquizofrenia maquinalizada… Os psicanalistas são os padres desta nova saga; digo, padres sem batina. Deleuze e Guattari fazem críticas ao pensamento… Ler mais >

Boni
Boni
9 anos atrás

porque esse tipo de texto não é só jargão e satisfação do desejo do autor de ser reconhecido por seus dotes literários?

Edson Gonçalves Filho
Edson Gonçalves Filho
9 anos atrás

Você fala de Freud? Ele se formou em medicina. Penso que é o único médico, na contemporaneidade, a se interessar por questões metafísicas. O neurologista se utiliza sim da literatura como análise social e histórica. Goethe é estudado por Freud; Deleuze e Guattari estudaram a obra de Artaud e dentre outros malditos. Eu, na minha adolescência lia com entusiasmo a obra Dostoiévski, que fora considerado por Nietzsche, o primeiro psicológo decente da Europa. A análise literária é o pano de fundo para se compreender todo o processo que engendra a máquina do capital na sua forma asilar de ser e… Ler mais >