Encarando o teto da minha analista, descrevo a angústia que sinto ao ler “Introdução ao Narcisismo”. Explico que, a cada conceito que Freud menciona e eu não domino, sou preenchida pelo sentimento de atraso em relação aos meus colegas. Eles, desde o começo da formação, têm a certeza pela psicanálise. Eu, ainda, passeio entre abordagens com o compromisso de uma mesa de bar. Multi-ignorante. De repente, ouço a voz serena que vem de trás do divã: “E qual o problema de descobrir ao ler?”. A minha queixa se desmonta em absurdo pela simples exposição do óbvio: aprender é entrar em contato com o que ainda não se sabe.
Me sinto burra com a mesma frequência que me sinto inteligente. Bom mesmo é quando é ao mesmo tempo. Descobri que valorizar o sentir-se burra é tão eficaz que até parece trapaça. Treinei notar o entendimento engasgando no corpo e identificar essa sensação como indício de que estou engajando com algo importante para mim – explorar o desconhecido. Aquilo que antes paralisava se transfigura em sinal de caminho certo. Uma placa piscando em neon: É por aqui mesmo! Talvez o maior ganho dessa transvaloração seja o de me lembrar algo que eu já sabia aos seis anos: aprender perguntando. Naquela época, já acordava acompanhada de porquês e comos: “Mãe, é possível morrer de medo?”, “Pai, os gregos antigos escovavam os dentes?”…
A pergunta infantil tem uma implicação com a ignorância – e os adultos a perdem grosseiramente. Percebam a inversão ridícula: Perguntar para mostrar que sabe. Adulto, quando vai fazer pergunta, é retórica! Que desperdício. Longos comentários ocupando um espaço que poderia ser cheio de perguntinhas atrevidas. Eu gosto mesmo é de interrogar apontando para o vazio escandaloso, onde tem um pedaço enorme faltando no alicerce de algum conhecimento, e indagar aos berros: “Alguém sabe o que vai ali?”. Nas aulas de psicologia, passei a levantar a mão para tirar dúvidas desse tipo. “Porque é que essas histéricas são todas mulheres?”, ou então, “Esse falo lacaniano, quando é que é ele é símbolo e quando é pinto mesmo?”.
Esperava alguma punição terrível por perguntar o que parecia óbvio. O castigo, no entanto, não veio. Em seu lugar, respostas – algumas, ótimas. E, de brinde, suspiros de gratidão pela minha sem vergonhice, dos meus colegas em ignorância. Levei o hábito inquisitivo da sala de aula para qualquer lugar. Num anoitecer no parque, peço ao meu amigo da física que me explique as fases da lua. Antes de ir ao cinema, pergunto à companhia marxista o que, afinal, é a dialética. Uma queridíssima bióloga me conta na praia sobre a amamentação das baleias. Suspeito que aprendi mais ao lado da mesa de sinuca do que na biblioteca.
Evidente que o valor da conversa não torna a leitura obsoleta. A meditação solitária decanta conhecimentos de uma forma que lhe é própria; e a disciplina certamente é uma peça indispensável do rigor. Se não entramos em contato direto com os textos, repetimos vieses sem decidir por nós mesmos o que entendemos de um material que resiste à passagem do tempo. No entanto, assim como a leitura traz elementos insubstituíveis, o mesmo é verdade para a conversa – e isso me parece negligenciado. Ao atribuir ao papo condição de procrastinação – algo que fazemos enquanto não estamos prontos para o que importa – ignoramos que alguns pensamentos só acontecem em contato.
Claro, quando leio, também entro em contato com alguém que sabe algo que eu não sei. A diferença é que o autor não me vê não sabendo. Perguntar para alguém de carne e osso exige a vulnerabilidade de ter sua burrice olhada nos olhos. Além disso, o Espinosa pode até me transformar radicalmente, mas eu nunca irei modificá-lo – os mortos tendem a essa teimosia. Há uma vida dos pensamentos que só acontece quando eles se esfregam. É preciso dois ou mais corpos presentes – na troca, na disputa, na dança do que eu sei e não sei com o que você sabe e não sabe: na mistura entre eu e você.
Posso tentar invocar a autoridade de Sócrates para defender que o diálogo é o meio privilegiado da filosofia; e ainda assim, a noção da conversa como forma legítima de estudo seria recebida com resistência. Acredito que tenha alguns motivos para isso. O primeiro é simples: Conversar é mais gostoso do que ler. E sabemos bem que não é todo mundo que lida com tranquilidade com o que é gostoso. Se é mais fácil descobrir com os outros do que sozinho – e ainda dá para acontecer no meio de um flerte molhado à cerveja! – deve ter menos valor. A infantil, vulgar e burra perguntadeira é julgada pelo gênio disciplinado, enfurnado em seus aposentos.
Sim, para variar, isso também é sobre gênero. Ser mulher e reivindicar o sentir-se burra é algo a se fazer apuradamente, sob o risco de sair prejudicada. Não queremos autorizar os homens a acreditar que os inteligentes são eles. É preciso examinar as socializações de gênero e escolher, a gosto, o melhor que cada performance têm a oferecer ao exercício da conversa – para que bancar a ignorância não seja apenas obedecer às exigências do feminino.
Por um lado, mulheres são mais incentivadas a se dispor aos outros com atenção e vulnerabilidade – ou seja, a escutar- uma arte indispensável para as boas perguntas. Por outro, dizem que a feminilidade deve pedir licença e admitir humildemente suas limitações. O flerte tipicamente heterossexual tantas vezes pede a performance de ser tão burrinha: se impressionar com a fluidez com que homens falam qualquer coisa, sorrir e não questionar respostas. Essa burrice sempre me foi prontamente autorizada, e não me interessa.
A burrice que eu quero ouve e fala alto, duvida, ocupa espaço, explora, se arrisca em testar ideias, debocha, se diverte, pede para explicar mais uma vez, propõe contrapontos, tem a irreverência de falar muito sabendo pouco com a confiança que é tão gentilmente concedida aos homens. A burrice que eu quero nem é burrice: é uma despreocupação com ser inteligente – ou com ser qualquer coisa que esteja pronta. É a experiência de se perceber incompleta não como fracasso, mas como oportunidade de ser sempre transformada pelos outros.
Referências
Freud, S. (1908). Sobre as teorias sexuais das crianças.
CARSON, A. (2023). Desejo e sujeira: ensaio sobre a fenomenologia da poluição feminina na Antiguidade. Sobre aquilo em que eu mais penso: ensaios.(Org. Sofia Nestrovski e Danilo Hora. Trad. de Sofia Nestrovski). São Paulo: Editora, 34.
da Silva Ferreira, T. A., Simões, A. S., Ferreira, A. R., & Dos Santos, B. O. S. (2020). What are values in clinical behavior analysis?. Perspectives on behavior science, 43(1), 177-188..
Platão, Fedro / Platão; tradução do grego, apresentação e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis; introdução de James H. Nichols Jr. — 1a ed. — São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2016.
Sobre a autora
Apaixonada por palavras e pessoas; cursei graduação e mestrado em psicologia na Universidade de São Paulo e hoje estudo filosofia também por lá. Minha pesquisa foi sobre a Teoria das Molduras Relacionais; uma perspectiva analista-comportamental da linguagem. Hoje, atuo como psicóloga clínica; e na filosofia sigo me interessando pelo que há de especial e ordinário nessa experiência de ser um bicho que fala.