Encantame-me a razão do superlativo. Que seja pouca a palavra para tanta coisa não é novidade: a delicadeza de um cílio requer um epitélio de rabiscos. E tempo. Escrever é dispender horas a procurar os fios de ouro na trama bruta da linguagem. E isso cansa, espeta os dedos. Por vezes é preciso um dia inteiro no tecer das partes de um minuto. Gostar da palavra é também odiá-la um pouco; é saber de sua incapacidade de diamante. Daí a teimosia da pessoa que escreve, ela persegue um paradoxo: redistribuir o real numa fileira de letras. A fala, por sua vez, não dispõe do tempo para tanto, mas inventa seus recursos. Como poderíamos transmitir com presteza a indizível nobreza de um grão qualquer sem esse apelo lúdico, que encomprida um adjetivo? Pode ser cafona, mas eu gosto: é lindíssimo.
É que a vida é muita. Lindo nem sempre basta. Então a gente improvisa, e arruma um sufixo de desculpa. Creio que essa invenção da voz guarda como um embrião o trabalho da escrita. O que fazemos ao manipular a palavra é torcer a matéria da linguagem para, quem sabe, trazer um pouco do fora para dentro. Como o exterior é imenso, amalucamos no ofício de fazer o camelo passar pelo buraco da agulha.
Dito isso, não lhes posso enganar fingindo desgostar de coisas difíceis. Quando algum tempo me passa sem um problema, arrumo umas cruzadinhas na banca de revistas. Isso quase não acontece, porque – talvez por mania – eu não consigo evitar a aguilhoada busca pelo melhor jeito de dizer como é bonita uma árvore. (Balançante, é esta que vejo ao meu lado agora.) Transpor em letras o que experimento no mundo é um problema que eu aprecio: é minha maneira de continuar de olhos bem abertos.
“Escrevo porque não quero as palavras que encontro”, é minha cisma de escrevente. Uma implicância – que gira e gira e gira – com o manuseio dos signos e seus significados, que perdura enquanto não encontro o corpo certo de frases que desnudam o sentido. Nessa artesania, a falha é constante, e o acerto muitas vezes fortuito. No entanto, a escrita não chega a ser um jogo de azar, porque perder a palavras é parte do processo de ganhá-las: miramos ali onde elas não chegam, mas a parábola do arremesso, ainda que não alcance o alvo, já enseja uma bela trajetória.
A errância é uma parte significativa do ato de escrever. Há textos que se escreve à deriva, e não é rara a surpresa ao escrevê-los – como se as ideias pensassem a si próprias no papel. Na literatura, por exemplo, as personagens podem tomar as rédeas, e guiar a própria embarcação, descobrindo o mundo fictício – e também a si próprias – enquanto o atravessam. Mas é preciso ter a disposição de deixar-se de lado para ouvir-lhes a voz. São muito pobres as histórias em que tudo é espelho do autor. Embora o bom texto seja uma ideia obsessiva, ele só é alcançado por meio de um descontrole, onde o eu se estilhaça no espaço inventado entre quem escreve e quem lê.
É desse espaço que falo. Do oco da palavra. Neste lugar, onde tudo significa alguma coisa e coisa nenhuma, é que se inventa o jogo: a estrutura da linguagem está dada como matéria dura, que submetemos à delicadeza obstinada da escrita. Nessa curvatura fabricada, transformamos as hastes que sustentam o edifício da linguagem em arcos narrativos, a fim de lançar flechas, e abrir brechas, pelas quais possamos vislumbrar o que palavra nenhuma antevê. Ser louco e ao mesmo tempo são – é uma maneira de encontrar no texto alguma fruição.
O superlativo é uma descrença. O analítico já coloca em cena a desconfiança: “Um só dia de silêncio, e sua voz, tão doce, me falta”. Para traduzir a doçura pura, suplicamos ao advérbio sua artimanha. É o sintético, porém, que denota o desespero: “Amargura de o encontrar belíssimo”. A invenção evidencia a falência do belo banal. É pouco. É tão pouco. Pouquíssimo. Então, para dar passagem ao que sentimos, operamos um corte na palavra, enlouquecendo-a com algum respeito, reverenciando o seu significado, mas contestando sua eficiência. Quem escreve sabe o quão fracas são estas caixinhas no dizer das coisas importantes, no entanto a poesia se guarda dentro delas, como a esperança na caixa de pandora.
Na fala, a linguagem vive; na letra, ela está morta: os signos estão estanques, os significados já dados. Assim, escrever é também uma espécie de necromancia, porque ressuscita a matéria morta. Nem que seja por um minuto. Para insuflar o pulmão da palavra, é preciso soprar-lhe os lábios com força depois da massagem no coração. Tomar nas mãos o corpo moribundo e agitar-lhe até que se levante. Daí também o inevitável erotismo na lida com o verbo: excitar o termo flácido até que goze, esparramando-se ao longo do texto. Apenas para voltar à morte algumas linhas depois. No entanto, despertar a palavra – nem que seja para que veja um só pôr do sol – há de valer a pena.
Estamos sempre prestes a morrer, e quem escreve morre uma frase por vez. Renasce, porém, quando um pequeno gesto de existência pede passagem em palavras. (Um pássaro, levíssimo.) Essa metamorfose da experiência em sílabas responde ao nosso ingênuo anseio pela eternidade: que eu viva cada vez que for lido, é o que pensamos para nos reconfortar. Não é de todo mentira, a escrita é um registro que resiste ao tempo. Ao longo dos milênios, a capacidade de passar a informação adiante tem sido sua mais aplaudida função. Como lidar, entretanto, com o fato de que um poema louco, como o retrato léxico de uma vitória-régia, possa ser tão imortal quanto uma enciclopédia?
Convenhamos, não escrevemos para ser eternos, escrevemos porque vislumbramos a eternidade num verde punhado de folhas. Se duramos nas letras, é por acaso. Assim, um ensaio como este é apenas um subterfúgio para o prazer (embora tenha me doído um tanto). Uma bandeja de docinhos meio amargos, é o que lhes entrego. Quem sabe propicie, se muito, uma olhadela pelas venezianas, um sopro que balance as cortinas, um momento brevíssimo de graça. Passei algumas manhãs e tardes e noites cozinhando estes versos na minha cabeça, doido doido. Pra quê? Não sei. Por quê? Ah, isso eu lhes avisei logo no início: me apaixonei por um superlativo.
Referências
Roland Barthes, O prazer do texto
Ítalo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio
Ursula K. Le Guin, Como criar histórias
Paterson, Jim Jarmusch
Li cada versículo embriagada de emoção, com os olhos cheios de lágrimas, inebriada por cada momento suportado em mim! Ativei em minha escritora adormecida através desse contexto inebriante e excitante, o qual traz prazer e alegria momentâneas! Obrigada!… E nesse momento dois beija-flor is voando em consonância enquanto escrevo para você!