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O que é esta vida senão um moto perpetuo? É possível questionar o caráter transitório da existência? Definitivamente não! Acontecemos no tempo, não há dúvida quanto a isso. Somos, pois, seres do tempo, criações espontâneas de um movimento contínuo. Sendo assim, importa-nos refletir sobre o emprego deste tempo, que compartilha conosco um pouco de sua grandeza. Fato é que o tempo nos excede, mas nos concede a lisonja de estarmos nele, habitá-lo.

O relógio é o novo senhor!” bradou alguém do alto de sua torre; provavelmente, logo em seguida, o empreendedor completou: “Sim, tempo é dinheiro“. Pois bem, este texto pretende ser um grito de resposta, algo como: “Para o inferno com tais máquinas!”, ou “Nosso tempo não cabe em seus ponteiros!“. É muito interessante para alguém que carreguemos nos bolsos o horário exato, será interessante para nós mesmos?

– Amjad Rasmi

A medida é uma das maneiras de colocar as coisas à nossa disposição. Elas não são problemáticas em si mesmas. O que devemos questionar é o uso destas medidas, pois não sabemos ao certo a quê (ou a quem) elas servem. O relógio e o calendário, tal como os conhecemos na grande cidade, estão fundamentalmente a serviço do capital, aí reside o problema. Somos escravos! Não há uma só alma que tenha uma boa relação com o relógio, isto porque o uso que fazemos dele é autoritário, servil. Já o calendário prevê nossas misérias, ele é misericordioso e nos presenteia com os fins de semana e feriados, mas obriga a ser úteis nos outros dias. Pensemos seriamente por um momento: o tempo cronológico, medido, quantificado está a nosso serviço ou nós estamos a serviço deles?

A resposta é obvia: estamos submissos a eles, assim como fomos escravizados à lógica perversa do mercado atual. O que regulamenta o uso do relógio é o quanto de valor monetário nós somos capazes de produzir, é o nosso devir-máquina, isto é, a exploração da capacidade que o homem tem de repetir-se reproduzindo até a exaustão alguma utilidade social. Eis o sonho disciplinar: uma sociedade de corpos-dóceis reproduzindo com regularidade cronométrica seus serviços e bens de consumo. Esta mensura absoluta permitiria calcular tudo com exatidão, o que é fundamental para o conservador, pois a previsão do futuro serve justamente a ele, que quer se conservar e não ao que quer se transformar.

Não nos interessa ser máquina de reprodução! Não nos interessa ter o coração medido em batimentos por minuto. Não nos interessa ter o corpo organizado para a repetição. A sociedade industrial produz subjetividades como produtos em série, todos iguais, e nós, como extensão das máquinas, reproduzimos tudo da mesma forma. Ora, não nos interessa a reprodução, mas a criação! Não queremos ter o sono, a fome, o desejo regulados pelo relógio. Queremos o corpo como um território livre de organização, como um espaço autônomo de criação de si mesmo. Antes de tudo, queremos enxergar a pertinência daquilo que produzimos. Para isso, não há outra opção senão entrar em combate, pois aquilo que queremos não parece interessar aos homens deste mundo: a intensidade não tem valor monetário.

Nesta batalha contra o tempo como relógio, devemos buscar outros prismas para enxergá-lo, pois se olharmos para o tempo unicamente pelos instrumentos que temos para medi-lo, acabaremos convencidos de que ele é a medida, ou seja, de que ele nada mais é do que um ciclo de 24 horas que se repete indefinidamente. O relógio não nos diz muito além disso. O que pode nos mostrar outra maneira de se relacionar com o tempo?  Lewis Carrol costumava dizer que a arte funciona como uma máquina de “esticar tempo e movimento”. Colocando em poucas palavras: desejamos brincar com o tempo e não lutar contra ele. O devir-criança nos interessa mais do que o devir-máquina. O tempo que dura é mais precioso que o tempo medido.

– Amjad Rasmi

Pensemos na música. Que é ela senão a arte de construir novas durações? Nos limites da melodia, os segundos são desprezados. O tempo da música se sobrepõe ao tempo do relógio e cria uma nova consciência de duração. “Ouvir uma melodia é ouvir tudo ao mesmo tempo. Toda melodia nos mostra que o passado esta aqui! Qualquer experiência que se fundamente no estético, na criação portanto, não terá no tempo do relógio o alicerce de sua construção. O tempo entendido como Chronos é inútil do ponto de vista do artista, o que o interessa é o Kairos, o momento oportuno, o do acontecimento, o do encontro.

Ao tomar o tempo como o momento oportuno da experiência, toda medida se torna trágica. Medir a intensidade da experiência como uma grandeza comum acaba por desencantá-la. É como querer contar ao Don Quixote que os gigantes eram na verdade moinhos de vento. O que há de pior nesta vontade de mensura é a suposição de que lidamos sempre com o esgotável, afinal não pode haver o infinito onde se pretende saber a dimensão exata. Quando percebemos, estamos poupando tempo. Que doença…

O jardineiro toma como referência o sol, suas flores não se preocupam com os segundos. O monge toma como referência a própria respiração, sua meditação tem períodos definidos pelos pulmões. O pintor toma como referência a própria inspiração, seus quadros não se importam de nascer aos fins de semana. O ritmo da civilização ignora, atropela, dilacera todos estes andamentos paralelos e impõe um ritmo marcado por combustões a diesel por sobre as vontades particulares.

Projeto simples, mas nada fácil: colocar o tempo a serviço do indivíduo. A duração criativa é mais importante que a velocidade da esteira de reprodução. Um primeiro passo é desprezar os relógios quando estes forem colocados acima de nós, mandá-los ao inferno como sugerimos anteriormente. Buscar satisfazer as necessidades da melhor maneira possível, isto é sobreviver; buscar o tempo dos artistas, o momento oportuno, a potência em ato, isto é viver.

Texto da série:

Regime Ditatorial de Valores

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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anisioluiz2008
11 anos atrás

Reblogged this on O LADO ESCURO DA LUA.

musicaefantasia
11 anos atrás

Postagem muito bem escolhida, mestre. Como de hábito. 😎

Margareth Rotondo
Margareth Rotondo
11 anos atrás

Não somos estas máquinas? Talvez sim, sempre talvez. Porém tudo é máquina, o mundo é uma maquinaria, não acha?

Lucas
Lucas
11 anos atrás

Como é interessante essa relação com o tempo. Vejo que a absurda maioria das pessoas vive em sintonia com Khronos (infelizmente também me encaixo) do que com Kairós. Não é atoa que muitas pessoas, tardiamente, se arrependem da forma como aproveitaram seu tempo. Mas é difícil pensar em como seguir na vida sem se tornar refém do tempo de Khronos, da máquina organizada pelo capital; as opções parecem, se não ínfimas, loucas aos olhos de quem vive conjugalmente com o Tempo do Homem. Qualquer tentativa de mudança e somos taxados de preguiçosos, loucos, vagabundos. Como se o certo mesmo fosse… Ler mais >

Abraxas
11 anos atrás

Infelizmente é assim que decorre com a maioria dos indivíduos na Civilização Industrial. Democracias com todas as suas ditaduras subservientes, paradoxal não?

joanhdeux
10 anos atrás

Republicou isso em Joanhdeux.

SvenHeiter
10 anos atrás

Ótimo texto e gostei da colocação de Kairos aqui. Se bem que ele poderia ter se estendido um pouco no Áion e, consequentemente, Heráclito.

Bibiana Munhoz Roos
10 anos atrás

Gostei muito do texto, o tempo é algo que anda me instigando bastante. Ouço as pessoas me dizendo que não gostam de tempo, aí eu paro e pergunto: ok, mas de quem tempo tu falas? Qual tempo tu conheces? Atrelado a isso, ando pensando muito em relação a “idade de morrer”: Chronos nos faz acreditar, que após “construir uma vida”, para aí então usufruí-la, é a hora de, na velhice, morrer. Mas de repente aparece o câncer, um avc, um tiro, o atropelamento e num instante tudo se vai. Quando vamos nos desprender de Chronos? Quando vamos compreender que tudo… Ler mais >

Sergio Ricardo
9 anos atrás

Muito interessante sua postagem. Aproveitando, vou deixar meu blog tbm, com textos de reflexões da vida humana, pra quem se interessar.

http://www.profundezahumana.com.br