Ao que tudo indica, nós somos a última geração da espécie humana que pôde contar com alguma regularidade climática. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática (o IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU) baseou-se em milhares de estudos científicos diferentes e projetou um aumento de 3,2ºC na temperatura média do nosso planeta até o fim deste século. Posto assim, em números tão pequenos, pode parecer pouco, mas na realidade é aquecimento suficiente para causar desastres em cascata, responsáveis por centenas de milhões de mortes, e alterar completamente o modo de vida de todos os seres que vivem e viverão aqui – e não podemos desconsiderar os casos mais pessimistas, que realmente consideram a extinção.
Aos que continuam achando que o aquecimento não é motivo para alarde, é bom lembrar que, das 5 extinções em massa que aconteceram na Terra, apenas uma delas foi causada pelo famoso meteoro, aquele que acabou com os dinossauros. Todas as outras foram efeito das mudanças de temperatura relacionadas à mudança na composição da atmosfera e, consequentemente, nos oceanos. Embora sejam diferentes em cada caso, o fato é que, desta vez, uma sexta extinção se anuncia e a causa somos nós: estima-se que 85% da queima de carbono aconteceu nas últimas três décadas, ou seja, apenas numa geração, a nossa.
Os mais otimistas falam da capacidade humana de reduzir a emissão de carbono pela metade até 2030, contendo em 1,7ºC o aquecimento esperado para o chamado “século infernal”. No entanto, isso dependeria de uma alteração radical do modelo extrativista desenvolvimentista, ou seja, dependeria de um enfrentamento às indústrias mineradoras, petroquímicas, agropecuaristas e também de uma grande mudança no modo de consumo dos países mais ricos. Resumindo, para conter o aquecimento global precisaríamos encontrar um freio de emergência para o capitalismo. Como fazer isso, porém, quando parece mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capital?
Nenhuma mudança local será capaz de conter o aquecimento global. Parece uma afirmação redundante, mas o fato é que ainda não conseguimos compreender a urgência da pauta ambiental para além do âmbito científico, e isso se deve a muitos fatores. É claro que uma boa parcela de responsabilidade está nas mãos dos políticos negacionistas, mas talvez haja uma dificuldade inscrita na própria natureza humana, isto é, na maneira como nós somos capazes de perceber as coisas. A ideia de que o mundo está mudando para algo tão distante da experiência habitual nos é absolutamente estranha – o que a torna praticamente impossível de se imaginar!
Como imaginar todo o litoral debaixo d’água? O curioso é que já não precisamos de tanto esforço: cada dia mais nos deparamos com fenômenos climáticos extremos. No entanto, continuamos chamando-os de desastres – e isso só mostra como a nossa capacidade atual de compreendê-los se dá apenas pela perspectiva do acidente, como eventos que acontecem fora da regularidade conhecida. No entanto, a realidade é que a piora do clima não está no futuro, está no presente, ainda que o percebamos apenas como um fantasma premonitório de dias ruins.
Encontrar uma alternativa para a continuidade da nossa espécie no planeta depende de uma árdua tarefa: comunicar um pesadelo, isto é, criar uma perspectiva comum sobre uma realidade terrível para a qual não temos ainda a experiência necessária para enxergar concretamente. O problema é que não possuímos analogias suficientes para levar a imaginação a lugares tão ruins, tão distantes da realidade dos últimos milênios. Alguns falam em holocausto ambiental, mas parece não ser suficiente. Se nossa espécie conta a história de uma tomada de consciência, como trazer a ela um fato tão desconhecido como a alteração absoluta na maneira como os dias amanhecem, aquecem, anoitecem e esfriam?
Tudo isso é bastante desesperador, mas temos ao menos um motivo pelo qual procurar uma luz no fim do túnel: a razão, desde sempre, é o instrumento que tensiona a experiência, elevando a imaginação à nova potência. De alguma maneira, nós temos capacidade de ir muito além do que está imediatamente dado. Somos seres formados pelo hábito, mas possuímos uma faculdade inconformada, meio débil, que o questiona. Isso nos levou, por exemplo, a perceber que não é o sol que gira em torno da terra, embora essa realmente seja a nossa percepção diária, quando o vemos passar por cima de nossas cabeças.
A razão questiona o hábito, suspende as crenças, promove hipóteses, amplia a experiência e, assim, acessa ideias mais amplas sobre a realidade. Há quem pense que essa capacidade por si só nos fará superar a crise ambiental, mas estes novos iluministas, teólogos da tecnocracia, parecem fazer pouco caso do que é um ambiente que se transforma rapidamente em arma de extermínio em massa. A racionalidade é frágil, uma luz piscante em meio à escuridão, e confiar unicamente na sua capacidade de contrariar a experiência habitual só mostra o quão desesperados estamos frente ao caos.
É verdade, um farol é tudo o que procuramos quando estamos perdidos em alto mar. O problema é que, no caso em questão, a experiência habitual nos ofusca a tal ponto que a luz da razão não passa de um mero lusco-fusco, que para a maioria das pessoas mais parece papo conspiratório. Como levar a sério uma ideia que contraria a experiência que fazemos do mundo todos os dias ao acordar? Mais do que isso, como tornar comum uma ideia tão dura, baseada na imagem de um mundo tão hostil? Sem dúvida precisaremos de mais do que a pura razão.
De maneira um pouco controversa, há um elemento que pode trazer alguma esperança: a mudança na própria experiência. Os efeitos destrutivos das mudanças climáticas serão cada vez mais difíceis de serem ignorados enquanto eventos globais interrelacionados que têm a emissão de carbono como causa. Não deixa de ser estranho esperar uma nova consciência a partir dos desastres, mas parece inevitável que, em algum momento, a comunidade humana comece a encarar o terrível cenário da mudança climática pela perspectiva da necessidade. Resta saber se atingiremos este ponto a tempo de mudar a rota. Quantas coisas não mudam mais rápido do que a nossa capacidade de percebê-las?