Não nos foi dado o papel principal no drama cósmico” – Carl Sagan, Pálido Ponto Azul
Imagine um ser unicelular crescendo no musgo de uma uva apodrecendo. Os fungos desta uva começaram a crescer faz pouco tempo, e o organismo celular mal nasceu e já está em processo de deterioração e morte. A uva estragando está jogada no chão da feira, mais ou menos ao lado de um melão, bem maior, mas que também foi descartado por ser menor e menos amarelo que outros melões da barraca. No fim das contas, nada disso importa, porque a feira toda logo acabará e tudo vai sumir, deixando apenas rastros perdidos apodrecendo pelo chão sujo.
Cada um de nós pode se identificar com aquele ser unicelular; a uva podre é a Terra, com o musgo em sua superfície sendo a frágil camada de vida; o Sol, claro, é o melão que logo logo deixará de brilhar. A humildade nasce desta constatação, ela começa como uma sensação de fundo que pouco a pouco nos retira do centro do universo, mostrando que ele é muito maior. Inicialmente nos sentimos humilhados, constatando nosso tamanho ínfimo em relação ao resto.
Entretanto, não estamos falando aqui da humilhação político-social que arrasa a vida de milhões de pessoas ao redor do mundo. Guerras, perseguições políticas, opressão de raça e gênero são apenas alguns exemplos. A humildade que se constata nos gestos do empregado que se coloca em seu lugar, a humildade se encontra refletida no olhar do colonizado que evita encarar o rosto de seu colonizador. Todas estas humilhações degradantes que geram subserviência devem ser combatidas com força e coragem.
Estamos falando de outro tipo de humildade, que podemos qualificar como existencial. A de se saber finito e pequeno. Esta se encontra mais no campo intelectual que no político-social. Imaginem, por exemplo, a sensação de Nicolau Copérnico, em 1530, ao perceber, pelos seus cálculos matemáticos, que a Terra não é o centro do sistema Solar; ou a sensação de Edwin Hubble, em 1929, ao descobrir que o Universo está em expansão; tente sentir a mesma sensação dos primeiros astrônomos ao observar, em 1995, uma imagem do céu aparente vazio e perceber que na verdade ele estava repleto de milhares de outras galáxias nunca antes vistas. Todos eles devem ter pensado algo como, “nós não somos especiais, não estamos no centro de nada”.
A mitologia e a religião fazem uso constante desse afeto: “sejamos humildes”, dizem eles, “somos muito pequenos em relação a Deus”. Nós não sabemos de nada, eles que sabem o caminho, eles que conhecem os desígnios, eles podem decidir o que é o melhor para nós. A humilhação sempre nos faz repensar quem somos, e muitas vezes pensar com a cabeça dos outros. Ora, se somos limitados, pequenos, pecadores, frágeis demais para qualquer coisa, só nos resta obedecer. Aqui o afeto se degrada em subserviência. A humildade nos retira as forças, nos vemos coagidos a seguir o melhor que foi definido por outro, um profeta que carrega eleva com os braços as regras do melhor caminho.
A Ciência também tem profunda relação com este afeto, afinal ela só é possível com este lembrete constante de humildade: a busca por conhecimento não se alimenta de certezas, elas são frágeis e escassas, ela se inspira numa radical falta de certezas. Estamos sempre no começo, somos personagens muito novos no teatro cósmico, chegamos há pouquíssimo tempo e precisamos aceitar nossa insignificância e efemeridade para descobrir alguma coisa sobre o mundo à nossa volta.
A filosofia é outro campo do conhecimento que faz uso da humildade para sustentar uma de suas principais características. Desde Sócrates, aprendemos a não afirmar que sabemos o que não sabemos. Humilde constatação de grande sabedoria. A sensata conclusão de que não se sabe de quase nada pode ser provada por um cálculo geométrico: imagine que o pensamento é como um círculo que cresce conforme juntamos conhecimento; aquele que mais sabe, por saber cada vez mais, aumenta simultaneamente o seu perímetro de relação com a ignorância, porque percebe que sabe muito menos do que imaginava. Em outras palavras, a borda do saber cresce conforme aumenta nosso perímetro de ignorância. Deste modo, podemos ir ainda mais longe e dizer que, proporcionalmente, não somos quase nada.
Em face disso, a nossa pequenez se torna inversamente proporcional ao quanto tentamos nos sentir especiais e importantes. A religião faz muito isso: somos especiais, nosso Deus morreu por nós, fomos escolhidos, seremos redimidos. Mas para a astronomia parece que não tão somos especiais assim, não fomos escolhidos e não somos o cume da evolução. Na escala cósmica, a bem da verdade, não somos nada, o universo que não dá a mínima para nós e as condições mais básicas de nossa existência são extremamente raras.
Constatamos nossa pequenez, e este é, paradoxalmente, um bom primeiro passo. Ser pequeno é também uma maneira de ser grande! Certamente é um jeito estranho de dizer, mas é isso, somos grandes porque sabemos que somos pequenos, da mesma maneira que Sócrates era sábio porque sabia que não sabia nada. Em suma, quanto mais diminuímos, mais crescemos. O paradoxo não é para ser resolvido, é para ser vivido. Ele está na raiz da humildade, porque se abraça com outro sentimento: o orgulho. Conforme nosso tamanho diminui em relação ao universo, conforme as escalas interplanetárias e intergaláticas aumentam, menor nos sentimos, e por isso mesmo, maior nos sentimos. É ambivalente, é estranho sentir estas duas coisas, mas é possível.
Não se trata de uma falsa humildade, como glorificação da fraqueza. Trata-se de um fato com consequências existenciais: perante o universo, somos definitivamente fracos, e seria de bom tom, ou melhor, de grande sabedoria, reconhecer isso o mais rápido possível. A finitude se torna nossa maior aliada neste mundo imenso. Não precisamos mentir e dizer que somos especiais, que Deus nos escolheu, que nossos genes são os mais fortes e bem selecionados. Comecemos por baixo, somos fracos, saber disso é a oportunidade de transformar esta fraqueza em força.
Foi Espinosa quem disse que a humildade é uma tristeza, porque surge da constatação de nossa própria impotência e debilidade. No campo social econômico e político, repetimos, concordamos plenamente. Mas há algo a mais escondido nesta frase. Porque constatar os nossos limites é, de alguma maneira, uma força. E talvez esta seja a nossa primeira grandeza: admitir nossa pequenez, ou melhor, é uma grande sabedoria saber o seu próprio tamanho, e no nosso caso, diria Espinosa, somos modos, apenas pequenos e humildes modos. Somos parte do todo, não somos deuses. Mas este afeto de modo algum leva à desistência, muito pelo contrário, ela é apenas uma primeira abertura. Depois se sua constatação começa a soar a pegunta: e agora, qual o caminho? esta pergunta o Universo definitivamente não responderá. Tudo bem, mais vale uma boa pergunta do que uma pobre resposta.
Referências
- Site Oficial do Telescópio Hubble
- Cosmos – Carl Sagan
- Verdade Emocional – Alice Holzhey-Kunz