Deitados no quarto escuro, vemos a vida passar pela janela dos aplicativos. Mesmo no mínimo, o brilho da tela ainda ofusca. Os olhos avermelham e ardem, mas já estamos acostumados com isso. As horas com o pescoço travado numa só perspectiva trazem um pouco de dor de cabeça, o que também já é esperado. O tempo vago corre enquanto rolamos a tela. Até que cansa: levantamos da cama, caminhamos até outro cômodo, observamos a casa inerte, sem saber o que fazer e, num gesto sonâmbulo, voltamos novamente os olhos para o celular.
É muito prazerosa a experiência de se entorpecer de bits e bytes, e é por isso que toleramos os pequenos desconfortos. Somos tomados de uma euforia bastante específica enquanto alternamos entre a série, a mensagem e o meme em questão de segundos. Associados ao silício, nossos pensamentos são processados em velocidades frenéticas e nos tornamos muito mais capazes de lidar com múltiplas tarefas simultaneamente – no entanto, conforme as horas passam, começamos a nos perguntar se olhar para uma tela realmente significa viver muitas coisas.
Píxel1 é o nome dado a um ponto de luz produzido numa tela como menor unidade na composição de uma imagem. Eles variam entre três cores: vermelho, verde e azul; a soma delas, o branco; sua ausência, o preto. Combinadas em 256 tonalidades, resultam aproximadamente 16 milhões de cores possíveis para apenas um quadradinho. Organizadas em linhas e colunas, estas pequenas células formam imagens que reproduzem com uma fidelidade impressionante aquilo que vemos a olho nu. Hoje, a maioria de nós carrega uns 2 milhões destes píxels no bolso, junto com as chaves de casa, o cartão do banco e a carteira de identidade.
Somos apaixonados pela luz. Não é de espantar, não há nada mais veloz do que uma onda luminosa. Se existem forças dignas de serem chamadas de divinas, a luz com certeza é uma delas. Não à toa, o gênesis a coloca entre forças como o céu, a terra e a água. Pouco a pouco, fomos tomando parte nessa criação, até que pegamos o jeito. É realmente difícil acreditar que nos tornamos capazes de reproduzir combinações tão complexas de luzes em aparelhinhos que cabem na palma das mãos. Trata-se, certamente, de uma feitiçaria tão avançada quanto a de um bruxo de qualquer tempo. Manipuladores de luz é o nome que o povo de um outro lugar poderia nos dar.
A tecnologia é um substituto do xamanismo2, mas sem a noção do perigo envolvido em mexer com tais forças. Adoramos pensar que somos livres e acreditamos que as telas existem para servir aos nossos desejos, mas não conseguimos passar nem mesmo alguns minutos longe do celular. Sentimos muito prazer, é verdade, só que estamos ficando cada vez piores em frear os primeiros impulsos. Parece que nossos computadores pessoais reforçam a nossa tendência irrefletida de fugir de qualquer desconforto. Ao menor sinal de angústia, nos refugiamos em nossos mundos digitais particulares, treinados para oferecer uma pronta resposta para qualquer desejo: temos aplicativos para reclamar apenas por reclamar, para colocar um filtro colorido no cotidiano, para comprar algo que chega amanhã, para gozar bem rápido, para rir até esquecer.
A lógica algorítmica nos tornou reféns de nossos próprios interesses. Um aparelho alimentado com tanta informação sobre o que desejamos está longe de ser inofensivo, só não sabemos ainda mensurar o quanto faz mal. Não é preciso muita reflexão para concluir que é viciante. Conhecemos muito bem o prazer de tocar uma tela responsiva, mas, assim como acontece com outras substâncias, começamos a nos preocupar quando percebemos que todos os nossos prazeres começam a se reduzir em um só. Para além de qualquer moralismo, o celular pode nos fazer bem, mas é muita ingenuidade pensar que ele não pode nos fazer mal. Para começar, basta perceber o quanto ele impõe um outro ritmo para a vida. Só de estar por perto, ele modula nossas ideias segundo suas vibrações e, mesmo que estejam silenciadas todas as notificações, ainda resta o próprio aparelho com sua aura hiper conectada.
O celular nos incita a abandonar o presente imediato exercendo uma pressão contínua sobre os nossos desejos atuais. Assim, ele se torna o principal mediador da virtualidade, isto é, daquilo que acompanha o presente em seu tornar-se. É muito desconfortável a sensação de que todas as coisas dependem da mediação de um smartphone para vir a acontecer. Sob a influência do aparelho, temos a impressão de que temos um caminho possível para todo desejo, mas esquecemos que a virtualidade é um quase-ser3, ou seja, para além de qualquer neutralidade, o celular funciona também como filtro dos desejos, na medida em que os encaminha de uma maneira determinada4, e isso se torna tão mais grave quanto mais circulamos por plataformas orientadas pela axiomática capitalista.
A maior parte do nosso tempo no celular é passado em redes sociais, que até outro dia não existiam. Para muitos de nós, a empolgação da novidade já passou: a sociabilidade prometida pelas redes às vezes nos oprime, porque o imperativo da exposição – de si mesmo e dos outros – é um fardo difícil de sustentar. Uma parte significativa da nossa energia desejante é usada na produção de imagens às quais confiamos a narrativa de nossa subjetividade, e isso cansa. Nestes momentos, imaginamos como seria a vida fora destes circuitos, e somos imediatamente assaltados por perguntas como: “onde conhecer pessoas novas?”; “será que as amizades resistem ao silêncio da vida offline?”; “qual o valor das coisas não publicadas?”; entre outras aflições cibernéticas. Talvez esses pensamentos intrusivos sejam sintomas antecipados de abstinência. Fato é que, muitas vezes, as redes sociais nos prendem entre a tristeza de ficar e o medo de sair.
Será que há lado de fora? As telas agora são parte da nossa pele5, e é por isso que sentimos tanto prazer em tocá-las. A pele é, por excelência, aquilo que reage ao toque, e isso provavelmente faz dela o órgão mais erótico que temos à nossa disposição. Parece que o contato é o fundamento de toda a sensualidade, mesmo entre ideias. Assim, dada a semelhança, propor uma vida sem telas significa apelar para uma prática ascética, isto é, um exercício de purificação dos prazeres. Se resulta em uma prática interessante ou não, é difícil prever. No entanto, já não somos mais modernos, confiantes no futuro e suas velocidades6. Estamos tomando consciência, trinta minutos por vez, de que a palavra celular possui cela como raiz – às vezes parece que vivemos em uma prisão feita de píxels.
1 Píxel é a abreviação agregada de duas palavras em inglês, “picture” e “element”, ou seja, o menor elemento de uma figura
2 Para mais sobre esse tema, ler a crônica “Tecnoconsciências” de Paul B. Preciado
3 Este é um dos termos que Deleuze usa para falar da ontologia própria ao virtual.
4 A tela é como um solo que propicia aos acontecimentos brotarem de uma determinada maneira. Isso é tão verdadeiro para um escritor olhando a folha em branco quanto para alguém que abre o Instagram, mas existe uma grande diferença no envolvimento com o processo criativo em cada um dos casos, que é o que realmente faz de qualquer experiência algo verdadeiramente significativo.
5 Preciado chega a afirmar que em jogos como Candy Crush o objetivo é fazer o aparelho gozar
6 “O mito da velocidade sustenta todo o edifício da modernidade, não apenas aquele imaginário, mas também o produtivo, o econômico e o militar.” Franco “Bifo” Berardi, Depois do Futuro
Adorei o texto e a escolha artística
<3