“Depois de tanto ler novelas sobre nobres cavaleiros enfrentando monstros para salvar suas Dulcineias, Dom quixote estabacou-se contra um moinho de vento pensando que era um gigante”, é o que viria escrito em letras garrafais amarelas sobre uma tarja preta logo abaixo do título de um romance qualquer, se o mundo fosse ainda mais careta do que já é. Para impressionar o consumidor, a frase ainda viria acompanhada da triste figura, o homem descabelado, os olhos esbugalhados, fazendo ver o perigo do delírio que mora nos objetos pouco conformados à realidade do nascer, crescer e morrer.
Há uma parte do livro de Cervantes em que Sancho Pança dá provas de sua aptidão para apreciação de vinhos. David Hume, o filósofo escocês, adora esta passagem e a destaca quando escreve seu ensaio “Do Padrão do Gosto”. Eis o trecho:
“É por uma boa razão”, diz Sancho, “que eu pretendo saber julgar um vinho: é uma qualidade hereditária da minha família. Dois dos meus parentes foram chamados uma vez para dar uma opinião sobre um barril de vinho, que supostamente era excelente, pois era velho e de uma boa colheita. Um deles prova o vinho, examina-o, e após uma reflexão profunda afirma que o vinho seria bom, se não fosse por um pequeno gosto de couro, que ele percebera nele. O outro, após ter as mesmas precauções, também dá o veredicto a favor do vinho, mas com uma reserva em relação a um gosto de aço, que ele facilmente distinguira. Você pode imaginar o quanto eles foram ridicularizados pelo julgamento. Mas quem riu por último? Ao esvaziar-se o barril foi encontrada no fundo uma chave velha com uma correia de couro amarrada a ela.”
Nesta anedota, o filósofo encontrou uma bela imagem para ilustrar sua ideia de que algumas pessoas são mais suscetíveis do que outras a “uma certa delicadeza”. Há um outro ensaio dedicado ao tema, onde ele começa apontando essa disparidade do gosto, mas ele logo adverte: tais pessoas têm de lidar com uma alegria viva em cada belo dia, assim como uma dor penetrante cada vez que a fortuna fecha a cara1. Então, ele começa a refletir sobre a relação que existe entre a sensibilidade nas artes e nas paixões. O curioso é que em algum lugar elas se cruzam: apaixonar-se por um livro guarda uma proporção com o endoidecer-se por alguém.
A paixão talvez seja o primeiro atributo dos loucos. E não apenas as amorosas, mas todas as diversas variações de sentimento às quais o mundo nos arrasta inevitavelmente. Uma foto velha guarda força suficiente para nos puxar pelos cabelos até às lágrimas. Em termos de afetos, todos nós somos um pouco incontinentes – incapazes de conter todos eles em ordem dentro do peito – e a loucura pode ser vista como um agravamento dessa condição. Biruta é uma palavra para doido e também para o instrumento meteorológico que não pode deixar de apontar para o lado que sopra o vento, porque foi constituído de tal maneira que simplesmente não pode resistir.
Neste sentido, talvez Hume esteja nos dizendo que alguns de nós nascem um pouco mais doidos que os outros2. No entanto, o objeto que ele persegue em seu próprio desvario filosófico é a delicadeza. Ele não está interessado em identificar patologias, a obsessão que ele transformou em texto foi a de entender como é que ser mais sensível para a dor pode fazer de alguém um poeta. O que ele observa entusiasmado é que a arte às vezes encaminha as paixões de maneira tal que transforma os loucos em gênios. Por meio dela, tanto no fazer quanto no fruir estéticos, todos nós temos acesso a uma nobreza, que se apoia justamente naquilo que verdadeiramente nos faz sujeitos: a qualificação de uma coleção de ideias3.
Está no nosso senso comum, os grandes artistas são meio malucos. Do surdo Beethoven ao Van Gogh sem orelha, exemplos não faltam. Hume, entretanto, escolhe Sancho e seu paladar apurado para as uvas amassadas. É um exemplo preciso, porque sua intenção é discutir a associação entre a sensibilidade e imaginação. Arte, para ele, é o processo de refinar aquilo para o qual somos especialmente sensíveis: há quem veja formas na pedra, há quem aprenda música com os pássaros, há quem desenhe com a luz, há quem só saiba dizer com o corpo – ser artista é começar a cuidar destas paixões de perto.
É uma novidade bem antiga que a loucura pode ser uma benção, uma forma inspirada de estar no mundo4. É claro que o sofrimento tem lá sua parcela, mas ele não serve de desculpa contra a beleza. Por mais que as biografias muitas vezes sejam tristes, as obras testemunham uma grande alegria. Algumas delas são expurgos, como extratos concentrados daquilo que foi vivido, e por esse motivo têm a capacidade de sensibilizar quem nunca antes havia sentido nada parecido. Então, podemos dizer que o artista não é apenas um trabalhador da própria loucura, ele é um causador de delírios com a melhor das intenções.
Hume acertou em cheio quando concluiu que a boa arte é a conquista de uma delicadeza da imaginação. Esse conjunto de palavras faz uma proeza, soma dois elementos muito diferentes em um só conceito: primeiro, a arte depende de uma disparidade de sensibilidade, que é totalmente subjetiva, afinal cada um sente de um jeito; em segundo lugar, porém, o processo artístico é uma racionalidade experimental, isto é, uma crítica da imaginação, através da qual o artista se pergunta: “como representar isso para os outros?”. Ao tentar responder essa pergunta com uma obra, é como se ele buscasse a colher com a tira de couro no fundo do barril, para dar provas reconhecidas de sua sensibilidade em um padrão geral reconhecível pelos outros5.
Assim, o objeto artístico é, ao mesmo tempo, uma apreciação particular e uma representação coletiva, que se conquista por meio de um estranho acordo entre os próprios sentimentos e a razão intersubjetiva. Ou seja, a arte se faz num jogo ousado, através do qual nós enlouquecemos a razão por um lado enquanto refinamos a paixão pelo outro. Há sempre o risco de perder, de ser tomado por sentimos abissais, de ser quebrado por um conjunto de letras ou afogado numa sequência de pinceladas, mas não nos arriscamos à toa: o preço da loucura é pequeno quando comparado ao custo da enfadonha vida ordinária do hábito.
É uma grande responsabilidade a brincadeira de levar alguém a sentir, e nós somos muito criativos nas maneiras de fazer isso: numa sala de cinema, o que se projeta sobre a tela é um sonho; o teatro é uma casa para os devires; uma escultura faz mover o estático; a dança é a constante redescoberta do corpo; a música é uma respiração coletiva; a arquitetura cria um espaço para o acontecimento; a foto guarda um instante infinito; a escrita é uma chance de fazer o pensamento circular pelo aberto. Todas elas – e outras mais – são formas delicadas da imaginação, porque buscam o raro equilíbrio entre o que se sente sozinho e o que se pensa com os outros. Dom Quixote de La Mancha enlouqueceu por ler demais, mas que louco perderia a chance de montar junto dele o seu Rocinante?
1 “Algumas pessoas estão sujeitas a uma certa delicadeza da paixão, o que os torna extremamente sensíveis a todos os acidentes da vida, e dá-lhes uma alegria viva a cada evento próspero, assim como uma dor penetrante, quando passam por infortúnios e adversidades.” Hume, Da Delicadeza do Gosto e da Paixão
2 Kant disse também, mas os chamou de melancólicos: “A pessoa cujo sentimento tende ao melancólico não é definida assim porque, privada das alegrias da vida, se consome em uma obscura melancolia, mas porque as suas sensações, quando se dilatam além de uma certa medida ou embocam em uma direção errada, aportam mais facilmente nesta tristeza da alma do que em outras condições do espírito. O melancólico tem dominante o sentimento do sublime. Até mesmo a beleza, à qual ele é igualmente sensível, não tende somente a fasciná-lo, mas, inspirando-lhe admiração, a comovê-lo. O gozo do prazer é nele mais composto, mas nem por isso menos intenso; porém, qualquer comoção suscitada pelo sublime tem para ele maiores atrativos que todas as fascinantes seduções do belo.” Kant, Observações sobre o sentimento do Belo e do Sublime
3 “O sujeito não é uma qualidade, mas uma qualificação de uma coleção de ideias” Deleuze, Empirismo e Subjetividade
4 Sócrates fala de quatro espécies de loucura quando faz seu elogio a Fedro: a amorosa, a do oráculo, a do ritual de cura e a inspirada pelas musas.
5 “Estabelecer essas regras gerais, esses padrões reconhecidos da composição, é como achar a chave com correia de couro que justificou o veredicto dos parentes de Sancho e confundiu os pretensos juízes que o haviam condenado” Hume, Do Padrão do Gosto
Referências
Dom quixote, Cervantes
Da Delicadeza do Gosto e da Paixão, David Hume
Do Padrão do Gosto, David Hume
Empirismo e Subjetividade, Gilles Deleuze
Fedro, Platão