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“Todos falam bem de seu coração, e ninguém ousa falar bem de sua razão” La Rochefoucauld

Pensem em Getúlio Vargas, ao longo dos anos 30, ordenando a queima de toneladas e toneladas de sacas de café; ou na EPSON instalando um chip em cada impressora que faz ela parar de funcionar depois de um determinado número de impressões. Mas não precisamos de exemplos tão específicos: basta lembrar de como temos roupas e sapatos acumulados em armários enquanto pessoas passam frio; podemos lembrar das casas vazias e das pessoas em situação de rua; ou na comida jogada no lixo, enquanto pessoas passam fome; ou naquelas que reciclam o lixo com todo cuidado mas nunca pensam em consumir menos. É por essas e outras que é possível perguntar: será que somos racionais?

É difícil responder uma pergunta filosófica com um simples sim ou não. Afinal, os seres humanos são muito complexos e contraditórios. Eles dizem valorizar o pensamento racional, inclusive defendem que ele nos torna quem somos e que suas conquistas nos levaram mais longe que qualquer outro animal. É compreensível, mas ao mesmo tempo parece que temos comportamentos completamente incongruentes e irracionais, que contradizem completamente o bom senso. Por isso a pergunta: será que fazemos um bom uso da razão? Em outras palavras, será que somos tão racionais quanto imaginamos ser?

Numa primeira tentativa de definição, a racionalidade é a habilidade de solucionar problemas. Aplicada à sociedade, ela seria a faculdade de organizá-la de modo a tirar dela o máximo de produtividade e eficiência. Exemplo disso é o taylorismo, no final do séc XIX, cuja técnica de cronometrar cada movimento dos seus empregados tinha como objetivo otimizar a montagem dos produtos e a separação dos funcionários tinha o objetivo de diminuir greves. Muitos até hoje defendem esta organização como a mais racional, por ser capaz de elevar a produção ao máximo. “Quanto mais rápido melhor”, diriam. Mas eles se esqueceram de perguntar, mais rápido pra quê, mais eficiente pra quem? No fim das contas, este modo de vida aumenta a felicidade dos trabalhadores?

Resistindo a este modo de vida e seguindo por outro caminho, muitos defendem um retorno a uma certa espontaneidade original. Antes é que era bom, eles diriam. A natureza possui uma harmonia intrínseca que a sociedade perdeu. Basta ver como lá a desigualdade social não é tão profunda. Se observarmos a abelha rainha, por exemplo, veremos que ela não mora num palácio; o lobo alfa não deixa a matilha passando fome para guardar para si a carcaça de milhares de alces. A razão não está do lado de uma mente organizadora, podemos viver em paz e harmonia, basta seguir a natureza. Foi por estes motivos que muitos disseram que a natureza é justa e a racionalidade humana leva a uma deturpação, uma deformação da natureza justa. Entretanto, a justiça que reina na natureza é do mais forte, do mais esperto, enfim, do mais adaptado, e esta harmonia é estremecida por perseguição e morte, da qual nem todos conseguem sobreviver.

Seguindo estas ideias, fica difícil responder, onde está a razão? No estado de natureza ou na sociedade? Mais uma vez, a resposta não  é simples. Certamente o pensamento racional aplicado à sociedade nos tornou mais tecnológicos. A razão tornou-se instrumental e criou utensílios cada vez mais interessantes e eficientes. Afinal, uma máquina produz hoje o que cem operários não produziam antigamente. A produção agrícola dos nossos tempos teria muita dificuldade de alimentar o mundo sem a ajuda das máquinas. Mesmo assim, a razão instrumental não foi capaz de gerar a justiça social que os mais desfavorecidos tanto esperavam. Enfim, nossa grande fé na razão não foi capaz de resolver uma das grandes mazelas da humanidade.

Deste modo, podemos ao menos concluir que justiça e razão não estão diretamente associados. É possível ser racionalmente tecnológico sem ser justo, bem como é possível ser justo sem uma sociedade racionalmente tecnológico. Hoje todas as forças da razão estão dedicadas a criar instrumentos cada vez mais eficazes. Mas afinal, é racional produzir em excesso e logo em seguida subir muros e cercas para deixar as pessoas afastadas desta riqueza? É racional construir bombas o bastante para destruir o mundo inteiro várias vezes? É racional bater o recorde de metas às custas do nosso futuro?

Talvez apenas um paradoxo seja capaz de expressar o que este texto quer dizer: nossa razão não é racional. Afinal, podíamos literalmente viver um paraíso na terra, mas dia após dia insistimos em caminhos que se afastam desta possibilidade. Faz sentido usar a razão para isso? Ou talvez, este é o melhor modo de organizar uma sociedade? Parece que a razão unicamente focada em resolver problemas nos impede de pensar que há outras maneiras de viver. Estamos preocupados com um wifi mais rápido, ou um carro mais econômico e potente. Será que é isto que nos falta?

Bergson foi um filósofo que teve a coragem de entrar nestes problemas. Ele perguntou: será que nos tornarmos ainda mais racionais é a solução? E insistiu, ao longo de toda a sua obra, na resposta negativa, argumentando que o desenvolvimento exacerbado da inteligência impossibilitava o florescimento da alma. Outros autores, como Adorno e Horkheimer, da Teoria Crítica, disseram algo parecido, acusando a razão de ter sido cooptada e deformada pela organização capitalista.

Nós argumentamos que a racionalidade precisa ser protegida do capitalismo e daqueles que só pensam nos lucros e bens materiais, porque a partir do momento em que eles tomam o poder, a sociedade se coloca em perigo. A razão instrumental é um meio para fins escusos, afinal, quem está pensando no seu próprio bolso não consegue pensar ao mesmo tempo no bem comunitário. É incompatível idolatrar a capacidade da técnica de produzir riquezas e ao mesmo tempo possuir sensibilidade comunitária, são dois tipos diferentes de razão. Porque a sedução mercantil drena as virtudes comunitárias de um sujeito, o leva a pensar em problemas e soluções diferentes daquelas que realmente são importantes para a comunidade, por mais que ele chame isso de razão e justifique tudo com números e gráficos.

Enfim, é triste pensar como tem gente que é inteligente, e nada mais. Inteligência não é ética, sagacidade não gera justiça, a argúcia do pensamento nunca aconselhou a temperança, enfim, a racionalidade não é a única qualidade dos sábios. Aliás, chegamos no limite da racionalidade, já é o bastante, não temos que lutar por mais. O caminho agora é outro: a razão não será capaz de resolver nossos problemas, apesar de poucos admitirem isso. A humanidade cresceu no intelecto, o que é bom, mas é insanidade achar que isso é tudo. Falta alguma outra coisa para complementar, um suplemento de alma, diria Bergson. Enfim, somos animais racionais, mas ainda não somos tudo que podemos ser.


Referências


Como citar

TRINDADE, Rafael. Somos Racionais?. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/10/14/somos-racionais/>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Fer
Fer
1 mês atrás

“Não existe linha reta, uma história universal, que nos conduza da barbárie à civilização, mas existe sim uma linha reta que conduz do estilingue a bomba nuclear”
Th. Adorno

Jader
Jader
1 mês atrás

Interessante o texto, porem discordo dessa “falência” da racionalidade. A razão é sim uma ética, não por si só, mas só é ela que é capaz de criar uma, baseada em uma “boa vontade, como diria Kant. “A razão é vã, e não há nada além da razão”, entendo todos os limites da razão, mas insisto, só ela é capaz de vencer todo fanatismo, cegueira, desarmonia e insensatez, multiplicadas pela logica capitalista.