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São diversas as maneiras de perder alguém. Dizem que a pior delas é a repentina, a morte besta1, que leva sem perguntar. Mas também não é fácil ir perdendo aos poucos: ninguém fica exatamente contente por presenciar, dia após dia, uma pessoa querida desaparecer. Ainda assim, não dá pra negar que é bom ter um tempo para se preparar. A morte repentina é injusta não apenas pelo susto, mas porque não oferece a dignidade de uma última conversa e, por mais que não exista boa despedida, a simples oportunidade de um adeus modifica significativamente o processo do luto – pois é o começo de uma difícil espécie de celebração. 

O luto é um trabalho. Apesar de evidente, às vezes esquecemos disso, e delegamos ao tempo a tarefa da cura, como se ele sozinho costurasse as feridas. Muitas pessoas continuam sangrando indefinidamente, esquecidas na fila da sutura temporal. Há casos em que a passagem dos dias, meses e anos não faz mais do que aprofundar o corte, até criar lá no fundo um buraco onde a dor se enfia, se agarra às raízes e recusa ir embora. Sim, o luto requer tempo, mas não há tempo no mundo que faça esquecer o amor que sentimos por alguém. 

É preciso um trabalho, portanto. Mas trabalho sobre quê? Ora, sobre a relação. É um sentimento estranho, uma pessoa que morre ou vai embora de alguma maneira continua com a gente. Sendo assim, o luto é um esforço de dar lugar para uma ausência que se faz presente. Não raro, conversamos com amigos com quem já não podemos mais conversar, pedimos conselhos a pais que já se foram, sentimos o carinho das avós ainda que elas não estejam lá, acariciamos os cães de outrora e lembramos dos olhos felinos que nos acompanhavam pela casa. Fato é que a relação com um amor que se foi continua a acontecer na gente, e a perda nos convoca à invenção de uma nova maneira dessa relação existir. 

O difícil é aguentar os golpes da realidade. Tudo vem nos lembrar o que perdemos, e cada pequeno detalhe parece um buraco por onde a vida se esvai. O mundo então se transforma no lugar da perda, um não-lugar, impossível de habitar: “quarto de não dormir, sala de não estar, porta de não abrir, pátio de sufocar”2. Nosso peito se torna o último refúgio da beleza compartilhada. Queremos preservar tudo, mas o real insiste em continuar seu curso. Nos agarramos a uma lembrança qualquer e gritamos: “pode seguir sem mim!” – e o pior é que os dias seguem, alheios a qualquer protesto.

Após a perda, cada amanhecer é uma prova de resistência. Levantar da cama é o primeiro teste que a realidade nos impõe. O corpo pesado, o peito apertado,  o riso impossível, as lágrimas incontíveis obstruem o caminho, e a vida continua com suas demandas. Quando alguém que amamos se vai, a imagem que fica é aterrorizante: às vezes a pessoa estava muito doente, e é difícil se libertar da visão de seu sofrimento; às vezes a relação se resumia à tristeza mútua, e o carinho andava tão raro. Seja como for, a sensação é de que a vida não tem como continuar, pois um fim tão horrível impede qualquer começo. É justamente esse o ponto: enquanto não houver uma elaboração que transforme a ideia de que tudo deu errado, de que tudo foi do jeito que não era para ser, não há como continuar. 

Dada a tristeza, parece cruel dizer que essa é a ocasião para um trabalho, mas o fato é que o luto, quando não elaborado, acaba nos prostrando em devoção à ausência. Então, se há um trabalho a ser feito, é o da transformação do lugar da perda em lugar de celebração3. Em outras palavras, o luto é a metamorfose da falta do outro no mundo em presença do outro em nós. É uma espécie de incorporação, por meio da qual celebramos a pessoa amada através de gestos, objetos, histórias, enfim, da beleza que só foi possível graças ao encontro. Essa vida dentro da vida, tão dolorida na lembrança, começa a pedir um lugar, pouco a pouco, e a nossa tarefa é dar corpo para a grande alegria que foi compartilhar o mundo ao lado da pessoa amada. 

O luto não acontece apenas quando morre alguém. Há um paralelo inevitável entre morrer e terminar. A diferença é que, no término de uma relação amorosa, o luto acontece entre pessoas vivas. E, da mesma maneira, a pessoa vai embora, mas fica: dispersa na poeira dos móveis, difusa nos reflexos da lua, diluída nas ondas do mar. Como fomos ensinados que no amor é tudo ou nada, o que acontece na maioria dos términos é o fim abrupto, o corte seco, a morte repentina – ou seja, o pior dos casos. Como seria o fim do amor se aprendêssemos que essa é também a oportunidade para uma metamorfose? Se tivéssemos disposição para a difícil celebração do fim, ele provavelmente seria completamente diferente: talvez o nada deixasse de ser apenas vazio para se transformar em solo nutritivo.

A perda nos convoca a compreender o significado fundamental de algumas palavras. No momento derradeiro, olhamo-nos nos olhos, com dificuldade, contra a vontade, e dizemos: “obrigado”. Essa palavrinha, que usamos todos os dias nos contextos mais banais, de repente aparece em sua forma mais pura, como uma reverência feita ao infinito nexo de causas responsável por momentos tão belos. Não existe um bom jeito de dizer adeus, é verdade. A despedida é sempre difícil, mas não é uma chance de se desperdiçar. Se o luto é o processo de renovar as alegrias do passado no presente, celebrando a grandeza do que foi, então a despedida é como uma semente, que deitamos com cuidado na terra, enquanto recitamos: “tem que morrer pra germinar”4. Como poderíamos aceitar que a perda seja apenas tristeza, quando temos a chance de agradecer?


Notas

1 Não à toa, Espinosa escolhe este exemplo, no apêndice da primeira parte da Ética, como uma das situações mais desafiadoras no nosso esforço racional contra o pensamento finalista. 
2 Versos da canção “Espaço”, de Vitor Ramil
3 Essa ideia está muito bem representada no filme “Mogari no Mori” (Floresta dos Lamentos), de Naomi Kawase. A proximidade entre as palavras Mogari (local do luto) e Mo Agari (final do luto) é desenvolvida de maneira sublime pela diretora. 
4 Versos da canção “Drão” de Gilberto Gil


Referências 

Floresta dos Lamentos, Naomi Kawase
Caminhos Cruzados, Levan Akin
Petite Maman, Céline Sciamma
Luto e Melancolia, Freud
Espaço, Vitor Ramil
Drão, Gilberto Gil
Ética, Espinosa

 

Como citar

LAURO, Rafael. A chance de agradecer. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2025/03/17/a-chance-de-agradecer>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Heloisa Machado
Heloisa Machado
14 dias atrás

Rafael, que texto lindo sobre a perda, o luto! Fiquei emocionada com cada frase. Me lembrei de mim (que tenho o marido acamado há mais de uma década), de minha sogra (que perdeu o filho e a vida acabou para ela) e tantas, tantas outras situações! Gostaria de ter esse texto para reler, replicar, recomendar.
Seria possível?

Nelly Bustamante
Nelly Bustamante
Reply to  Heloisa Machado
14 dias atrás

Ola Heloisa acho que voce quis dizer “Me lembrou”e nao “Me lembrei de mim”. Forte abraços sigamos na luta

Nelly Bustamante
Nelly Bustamante
14 dias atrás

eu adoro esses guris, eles levam a filosofia de forma simples e irreverente para todas as tribos, precisamos de mais vozes assim ✊🏿 saia da torre de marfim

Thais
Thais
12 dias atrás

Lindo!