A crise é estética – temos dito por aí. É uma pequena frase, que correlaciona arte e política em tempos de ascensão da nova direita. Às vezes é apenas um deboche, pelo qual zombamos do mau gosto dos caretas. Essa síntese elegante, porém, é mais do que isso, é a admissão de que a má arte é uma espécie de sintoma da decadência política, como um sinal da podridão na alma dos ricos e poderosos. Quem lembrar dos medonhos retratos presenteados durante o mandato do ex-presidente golpista não terá dificuldade em admitir essa correlação. Será apenas uma questão de gosto? Não parece o caso. Entre ética e estética existem mais correspondências do que parece. E não é difícil percebê-las, porque, no final das contas, o que cruza os dois campos é o desejo. Basta ser razoável para perceber a falta de ética da nova direita, assim como basta ter olhos e ouvidos para constatar o seu mau gosto para a arte. No entanto, essa simetria não se mantém quando chegamos à práxis: adoraríamos ver Bolsonaro preso, mas não falamos tanto em queimar os quadros de Romero Britto – por quê?
Vamos voltar alguns milênios para buscar um motivo. Na República de Platão, filósofo do século IV a.C., encontramos um diálogo em que Sócrates, o protagonista dos textos platônicos, transita entre a crítica da política e da poesia enquanto conversa com Glauco e outros amigos. Para compreender esse trânsito, precisamos começar com a proposta geral: se o desejo é o que movimenta as pessoas, ele é, portanto, um dos vetores principais da constituição da sociedade. Sendo assim, uma ideia de sociedade justa depende da formação de cidadãos que saibam moderar os seus desejos em função do melhor para a cidade. Nesta perspectiva política, Sócrates propõe uma hierarquia para os desejos que segue a divisão da alma em três partes: primeiro, os quereres que nos tomam pelo baixo ventre, comer, beber e transar; segundo, as forças que fazem arder o peito, a conquista, a honra e o poder; e por último, mas não menos importante, as ideias que excitam a razão, o bom, o belo e o justo.
Se seguirmos a divisão tripartite da alma para pensar três grupos distintos de sujeitos políticos, teremos em primeiro lugar os comerciantes, interessados na satisfação dos primeiros impulsos de prazer; em segundo lugar, os guerreiros, tomados pelo ímpeto da conquista, levados à guerra pela sede de poder; em terceiro, os filósofos, amantes de um saber que nunca possuem por completo, mas que os coloca em uma busca contínua por ideias boas, belas e justas. Entre estes três sujeitos, Platão insiste que cabe aos últimos a condução da república, porque o desejo de saber é o mais adequado à organização da sociedade. Em outras palavras, a política deveria ser protagonizada por pessoas dispostas a pensar sobre a justiça de uma perspectiva tão ampla quanto possível. O que a realidade mostra, entretanto, é que a sociedade é majoritariamente conduzida por pessoas interessadas no comércio e na guerra. Eis o diagnóstico platônico para a decadência de Atenas.
Neste contexto é que surge a famosa proposta do filósofo-rei. Tão conhecida, mas tão mal compreendida. Ela aparece como resposta ao problema do desejo na organização social e política. Ao longo do tempo, o filósofo-rei acabou se tornando um deboche na boca dos adversários da filosofia platônica. Para evitar esse engano, é importante retomar a proposta de Platão da maneira mais simples possível: a política deve ser feita por pessoas que buscam compreender o que é a justiça à luz da razão, e não em função do lucro e da conquista. Difícil discordar desta ideia, não é? Pois bem, passados milênios, lidamos ainda com problemas similares. Qualquer análise rasteira dos interesses dos parlamentares de nossa não tão nova república mostra isso. O boi, a bala e a bíblia são as forças que conduzem os desejos na política, e isso certamente não tem feito de nossa sociedade algo mais justo.
Em outro momento da República, Platão coloca em diálogo uma controvérsia que até hoje leva alguns leitores a queimar de ódio: a moderação da arte, tema que ficou mais conhecido como a expulsão dos poetas. A base do argumento de Sócrates é que, dos diversos fazeres humanos, a arte é a prática que está mais distante das ideias: um filósofo pensa o que é uma mesa, um marceneiro sabe fazer uma mesa, agora um pintor sabe apenas retratá-la. Isso não significa que a arte é, por definição, algo ruim, mas perigosa, pelo fato de que ela movimenta as paixões a despeito da relação com a verdade. Aquilo que a tradição nietzscheana elogia como potência do falso é justamente o que está sendo criticado aqui. A diferença entre eles, é que a filosofia de Platão está intimamente ligada à política e, portanto, se preocupa com a falsidade enquanto força que movimenta os desejos e forma os cidadãos.
Segundo o pensamento platônico, a arte depende de uma moderação, ela precisa de valores que não decorrem dela mesma, mas que são encontrados no processo de implicação com um pensamento mais amplo, que advém da filosofia e, consequentemente, está relacionado com a pólis. No entanto, o que é interessante no diálogo é que Sócrates é intimado a dar sua opinião sobre Homero – o mais nobre poeta da tradição grega – e fica preso em uma contradição: ele admite a grandeza de sua poesia, mas acaba obrigado, pelos argumentos que ele mesmo usou, a criticá-la. É um texto muito inteligente, porque dramatiza um problema nada fácil de resolver: como diferenciar a moderação da censura, a reflexão da expulsão?
Como em várias das outras aporias de Platão, não há resposta pronta para este problema, então ficamos com ele: Sócrates passa o bastão, para que pensemos por nós mesmos. Há inúmeros elogios a fazer à arte, o que não significa que ela deva ser imune ao pensamento crítico. O problema é que costumamos chamar de arte apenas aquilo que consideramos bom, ou aquilo que não tem função, que não precisa dar explicações a ninguém. No entanto, para compreender bem a crítica platônica, precisamos considerar como arte toda a técnica artística. Desta perspectiva ampla, a publicidade não deixa de ser também produtora de obras que movem as paixões, e aqui o perigo é evidente: quando a potência do falso se une ao capital, os cidadãos são seduzidos pelos comerciantes e guerreiros a continuar comprando e competindo. Assim, questionar a associação entre arte e capitalismo está longe de ser censura, é uma questão de justiça, e deve ser feita coletivamente.
Se expulsar um poeta fazedor de slogans de refrigerante soa exagerado aos ouvidos dos progressistas da esquerda institucional, podemos começar por uma discussão ampla sobre a regulação da publicidade. Isso evoca um outro problema: quem tem autoridade para fazer isso quando os poderes reguladores obedecem justamente aos donos do capital? Uma pergunta difícil de responder. De toda maneira, sabemos que a solução não passa por nenhuma casta elitizada, mas pela força da comunidade e seu pensamento radical, capaz de fazer da arte uma atividade política. Talvez ainda não estejamos preparados para queimar os quadros de Romero Britto como estamos prontos para incendiar as estátuas de Borba Gato, mas precisamos admitir que ambos representam valores que não convém à comunidade.
Referências
A república, Platão
A república de Platão, Alain Badiou
Nietzsche e a Filosofia, Gilles Deleuze
Platão e o Simulacro, Lógica do Sentido, Gilles Deleuze
A grande beleza, Paolo Sorrentino