Somos bricolagens, uma grande colcha de retalhos. João anda por aí com o rim de Teresa, que doou sua córnea a Raimundo, que deixou seu coração a Maria, que fez um transplante de medula para Joaquim, que doou seu fígado para Lili. Mas a partir do momento em que o sangue novo passa a correr nas veias de um órgão, ninguém sabe qual será o caminho que ele vai trilhar.
Sim, parece que os órgãos têm vida própria e quanto mais olhamos, mais complicado fica. As ideias de Lili, as vontades de Joaquim, as roupas de Maria, os medos de Raimundo e o dinheiro de Teresa, de onde vêm e para onde vão? Tudo está misturado com tudo, toda história começa no meio e a própria noção de individualidade começa a se tornar embaçada conforme a realidade deixa seus substantivos derreterem no calor sanguíneo dos verbos. Nada de individual permanece o mesmo, tudo se espalha e se confunde como a rama pelo chão da realidade.
Victor Frankenstein, o Pai, com letra maiúscula, é o arquétipo do cientista louco, um narcisista, um obcecado. Ele almeja a glória e se imagina disposto a pagar o preço. A faísca de sua loucura se transforma na energia vital que circula em suas veias. Sua descoberta pessoal é a energia galvânica que penetrará no corpo da Criatura Bricolagem e lhe dará movimento. A promessa de reconhecimento é garantida, mas, como sabemos, nada é tão simples. A Criatura se revela na calada da noite, enquanto Victor dorme, e mostra desde o primeiro momento que sua criação não se submete ao seu desejo.
O trabalho é de bricolagem, serra aqui, cola ali, amarra, costura, junta, torce, e tal tarefa termina sendo um obstáculo ao desejo de unicidade. Quando Victor leva suas ideias ao extremo, e empurra seu amor próprio em corpos mutilados e destruídos pela guerra, o destino se abre em direções imprevistas. Em outras palavras, a ideia de Victor não atravessa os órgãos sem ser marcada por suas partes. Pois quando a forma humana finalmente aparece, quando as máquinas se alinham, e quando o desejo as atravessa, tudo se desorganiza.
Sem que Victor perceba, o raio elétrico que dá vida à criatura é o mesmo que a separa de seu criador. O corpo atravessado pelo desejo passa a mover suas partes em conjunto, a criatura abre os olhos, se levanta, balbucia, anda, e quando aprende a falar, formula a mesma questão que amaldiçoa a todos nós: quem sou eu? E por que estou aqui? É então que o cientista cai em si: no lugar da eternidade das certezas, Victor vê erguer-se diante de si a monstruosa dúvida. Diante de sua criação o cientista se aterroriza!
Quem somos nós? Por que estamos aqui? A criatura percorre o caminho com a mesma angústia de todos os mortais que vieram antes dela. E, do mesmo modo que Deus criou Adão e Eva do barro para depois os abandonar, Victor se afasta de sua criação, deixando a pergunta em aberto. Assim, o irônico destino condena a Criatura a vagar pela face da terra. Na realidade, a única resposta que obteve gerou profunda revolta: sua vida não passa de um experimento científico, efeito da ganância galvânica, em suma, um instrumento nas mãos de um louco. A vida da Criatura é fruto de alguém que a pensou como meio, e não como fim.
Portanto, assim como nos mitos, a criação literária de Mary Shelley também conta a história de um herói absurdo. Esta é a definição que Albert Camus dá para seu trágico personagem: Sísifo, que depois de enganar os deuses, é condenado a empurrar uma enorme pedra morro acima apenas para depois vê-la correr morro abaixo. Mas a condenação dada à criação de Frankenstein possui uma sutil diferença, Sísifo ao menos sabia o porquê de sua condenação eterna e sem sentido, e assim podia encontrar um pouco de alívio para seu sofrimento pós-vida. Já a nossa criatura parece condenada de saída, sem ter cometido nenhuma afronta aos deuses. Perdida em sua existência absurda, ela não consegue dar conta da pluralidade que a atravessa.
A Criatura não é uma, ela é várias. Com o que ela sonha? Ora, certamente seus sonhos são múltiplos! Em cada parte de sua psiquê gritam vozes dissonantes, com palavras distintas, de regiões, religiões e convicções diferentes. Seu corpo quer rasgar o ventre nas mais variadas direções, ela é homem ou mulher, forte ou fraca, nova ou velha, ou tudo ao mesmo tempo? O desejo que pulsa em suas veias refletem distâncias, diferenças, intensidades, caminhos impossíveis de imaginar por quem só sabe falar no singular. E o que deseja tal criatura? Com certeza seus desejos são tão monstruosos quanto ela, surgem do abismo e murmuram palavras irreconhecíveis. Em suma, tudo que não pode ser representado percorre seu corpo pedindo para sair. É possível imaginar o esforço da Criatura para não ser dilacerada, ela não sabe dizer “eu”, apenas “nós”. Tudo nela é plural, tudo nela é mais que um.
Desta forma, a criatura abre caminho para uma nova metafísica, onde as definições de subjetividade ganham sutileza. O conceito de “alma mortal”, por exemplo, se torna limitado para todos estes impulsos e afetos. Poderá a filha do Dr. Frankenstein, no auge de sua afirmação, apropriar-se de sua multiplicidade de almas? Poderá ela dizer para si mesma, como soube Nietzsche: “não possuo uma alma imortal, mas muitas almas mortais”? Há beleza nesse pensamento, pois nele se abre toda uma postura diferente em relação à vida.
Se essa história de terror é trágica, é apenas porque sua heroína está consciente, na verdade, ela em nada difere de nossas vidas! A força galvânica que pulsa em suas veias não é diferente da que flui naqueles que a desprezam. A diferença é que a imensa maioria simplesmente não se apercebe disso, enquanto a criatura sim. Impotente e revoltada, ela sabe que seu destino não foi traçado por suas próprias mãos, ela foi objeto de outros e agora precisa encontrar seu próprio caminho. Mas é então que algo se transmuta, e o seu tormento, que deveria consumi-la, começa a lhe dar forças. Suas perguntas continuam ecoando no vazio infinito, mas ela não espera mais uma resposta do universo. E assim aparece uma espécie de felicidade neste silêncio.
Deixemos a Criatura a vagar sem destino. Sem saber, ela nos ensina a fidelidade dos que amam as misturas, e uma espécie de alegria possível apenas aos impuros e dissidentes. Enquanto isso, o universo misterioso abre suas flores de primavera, o inverno acabou, e a Criatura do Dr. Frankenstein segue plantando um destino que será somente seu. Ela não sabe de começos e de fins, mas ao menos controla os passos durante o caminho. Do mesmo modo que Sísifo, é preciso imaginá-la feliz.
Referências:
- Frankenstein – Mary Shelley
- Deleuze e Guattari
- Anti-Édipo
- Mil Platôs Vol.1 – Rizoma
- Nietzsche
- Além do Bem e do Mal, § 12
- Humano Demasiado Humano II, §17
Poemas
- Quadrilha – Carlos Drummond
- Poema de Sete Faces – Carlos Drummond
- Motivo – Cecília Meireles
- Com licença poética – Adélia Prado
- Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir – Fernando Pessoa





