A política nos tornou espectadores de nossa própria miséria. Eleitores de nossa própria escravidão. Estamos presos aos dispositivos institucionais e acorrentados aos mecanismos burocráticos tal qual rodas dentadas em antigas máquinas ruidosas. O vapor sufocante transforma o movimento em fluxos de sujeição. Os óleos que fazem tudo rodar são nosso sangue e suor, mas a força do sistema é espoliada a fins alheios. Estamos inundados de Afetos (bio)Políticos tristes, sujos de nossa própria miséria. E este é o melhor motivo para que emperremos o sistema.
Certa vez, pixaram em um muro: “Nem deuses, nem mestres“. Ora, os deuses estão mortos, todos sabem, seu sangue divino está em nossas mãos; já os mestres estão vivos, eles nos seduzem com palavras gastas e promessas de ordem e progresso. É difícil vê-los, eles estão encarcerados em seus castelos de ilusões, com barriga e conta bancária protuberantes. Pensamos que suas tripas dariam boas forcas, não podemos negar, mas nosso caminho é outro. A moda da guilhotina passou.
No topo da pirâmide do poder, o ar é rarefeito, ninguém consegue respirar, muito menos pensar. Descemos as encostas escarpadas, nunca aspiramos ao topo, pois sabemos que lá em cima estão todos atados. Correntes obtusas de disputa mútua. Palavras duras de impedimento recíproco. Conceitos universais de restrição conjunta. Ideais austeros de tristeza comum. Não queremos cumes, preferimos planícies.
Não queremos nos iludir, a vida é curta: não esperamos a revolução. O corpo não aguenta mais! Há sempre uma gota de humilhação para transbordar nosso copo de angústia e tristeza. O limite é sempre forçado e ultrapassado, mas cada vez que isso acontece, apresenta-se o momento de não voltar mais. Um dia, o que vivíamos como normal, cotidiano, se torna medíocre, insuportável, absurdo, inaceitável.
Traçamos limites, desmascaramos ilusões. Nos querem sonhadores, mas nos fazem escravos; nos incitam com promessas, mas nos tornam robôs. Nos pedem votos, mas contam com nosso passivo consentimento. Nos apresentam riquezas e ostentam títulos, mas plantam misérias e querem colher servidão. É isso que queremos? É isso que aprendemos a chamar de vida?
Precisamos voltar a pensar primeiro em nós. O egoísmo, além de estigmatizado, é um princípio político subavaliado. O sistema representativo, de poucos por todos, faz muito para poucos. Nós procuramos por um egoísmo sem indiferença, capaz de considerar a si mesmo sem desconsiderar o outro. Questionar os três poderes parece ser a única maneira de torná-los potências.
Dizem que a justiça é cega, mas nós sabemos que ao cego não falta visão. Pior seria se ela enxergasse, pois puniria mais e melhor. Tomamos posse dos direitos concedidos, obrigado, mas não nos contentamos com a miséria humana universal. Os direitos minoritários que são, por tantas vezes, concedidos e retirados tornam-se armas de luta, mas não recompensa de bom comportamento. Não vamos nos calar com o casamento igualitário até desconstruir as bases fascistas da família tradicional. Não vamos nos calar com as cotas até ampliar, reconhecer e remunerar os conhecimentos orais. Não nos confundam com reacionários por exigir mais do que os direitos que só mesmo uma revolução burguesa poderia nos dar.
Dizem que vivemos numa terra sem lei, mas nós achamos que temos leis demais! Não caímos no engodo de que as leis existem para nós quando a maioria delas só é aprovada com o respaldo dos donos da terra, quando os recursos só circulam pelas mesmas mãos, quando a força monopolizada do Estado mais parece uma milícia ordeira, parcial e repressiva. Quando a Lei é feita por uma minoria eleita pelo dinheiro, só podemos concluir que não são nossas leis. Nosso legislativo tem lado declarado e com certeza não é o nosso.
Dizem que o problema é a falta de pulso firme, mas nós percebemos que ele é bem rigoroso com os menos favorecidos. Se falta rigor, não é na execução, mas na distribuição, na clareza, na participação. Ah, o executivo, o capitão obcecado do nosso barco furado, com seus planos de inclusão econômica e desenvolvimento industrial… estamos muito longe de pensar como eles. Em tempos axiomáticos, nem todo desenvolvimento do mundo nos fará progredir.
O poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente. Precisamos urgentemente de um resgate do político. Não pelo povo, nem pela família, por nós. Precisamos de fundamentos sólidos, uma rede subterrânea de alicerces micropolíticos heterogêneos. Não para implodir o Estado, sabemos que não somos tão fortes assim, mas para realizar algo nessa vida. Precisamos criar heterotopias para relações rizomáticas e para ver surgir algo do qual nos sintamos parte. Isso não se faz apenas com a crítica, é para isso que temos princípios.
Petulância insubmissa: todo Não é passível de questionamento, todo Sim é um agenciamento possível. Cuidado, nem todo não é negação nem todo sim é afirmação: revolta e servidão são conceitos ressonantes, ínicio vibrante de toda espécie de cataclismas políticos, núcleo duro do pensamento libertário. Basta um princípio reto, uma meta criteriosa, para um destino certo. Servir menos é viver mais.
Desobediência irreverente: esperam de nós algo que não podemos dar. A consequência inevitável é a desobediência, mas não sem o escárnio e a insolência. O que esperam é o comportamento adequado, adestramento inofensivo, reflexos de submissão. Não podemos ceder, não faz parte da nossa natureza abaixar a cabeça em sinal de respeito. Nem queremos reverência dos outros. Queremos apenas encarar nos olhos daqueles que confiamos e rir na cara daqueles que desprezamos.
Emancipação voluntária: para todos aqueles que se submetem voluntariamente existem prêmios de consolação e pequenos prazeres. Vivemos as exceções: para todo emprego de merda existem as férias libertadoras, financiada em doze vezes; para todo chefe filho da puta existe o happy hour, com direito a futebol; para toda humilhação cotidiana no trabalho, submetido a prazos esdrúxulos, existe o carro do ano com banco de couro. A emancipação voluntária é cuidadosamente escamoteada por toneladas de comerciais de televisão, mas fazemos dela uma prerrogativa. Liberdade não submetida a prazos e financiamentos.
Micropolítica é o redescobrimento dos pequenos coletivos, das tribos, das associações, do menor; é o retorno diverso do que já foi nossa sociedade; é a melhor alternativa para a constituição de um conjunto de multiplicidades singulares; é a possibilidade de articular a diferença sem intermediação; é a admissão de que o verdadeiro político é o sujeito que cuida de si e por isso pode cuidar dos outros. Da arte de não ser tão governado assim, aprendemos que é possível viver na pólis sem se submeter ao outro.
Dizemos, por exemplo: não queremos ser ricos. Nosso voto de pobreza significa que não servimos ao capital, não acreditamos na falta que ele produz. Nossa revolta vai de encontro à ideia de riqueza atrelada ao dinheiro, acreditamos que o excesso de si é a melhor fortuna. Se pobreza e riqueza estão numa dialética de sujeição, onde uma é necessária à outra, buscamos outros princípios.
Dizemos: não queremos cargos públicos. Sempre que possível, evitamos o Estado, pois o consideramos o mais astuto dos pedágios, tirando a sua parte daquilo que não lhe pertence, impondo taxas àquilo que não participa, decidindo sobre assuntos que não governa, restringindo fluxos livres e regulando relações abertas – para sempre levar a melhor! O Estado sobrevive ociosamente e impera autoritariamente às custas de todos nós.
Em termos de produção, dizemos: somos autônomos, pois não alienamos nossa força de trabalho; somos independentes, pois evitamos as relações de subordinação; e somos apostadores, pois acreditamos na nossa própria força de criação, elaboração, apresentação e realização horizontal.
Mas não é fácil. Estamos num processo constante de formação e resistência. Além disso, nem todas as batalhas são vitoriosas. Por vezes, saímos pela tangente com a necessidade de reinvenção, por outras, simplesmente saímos pela culatra e temos que repensar do zero. Estamos contentes, no entanto, de estarmos vivos nessa guerra, vivendo no limite do possível com os olhos fixos no horizonte.
Nosso caminho é o da autosuficiência e da autarquia, multiplicação das liberdades com autonomia interdependente, sem autoridades nem autorizadores: reduzir ao máximo todo tipo de submissão, de nós e dos outros, para levar ao limite todo tipo de contentamento. Buscamos as condições de satisfação intrínsecas. Queremos o necessário naquilo que somos. Seguimos o inevitável, comungamos com a fatalidade, somos conduzidos pelo implacável.