Quando crianças, contaram muitas estórias para nós. Não diremos que são mentiras, pouco importa. Mas disseram coisas sobre céus e infernos, anjos e demônios, mundos do além e do aquém. Nos falaram de estrelas, constelações e personalidades; rituais, magias e espíritos; almas, pecados e, finalmente, salvações. Não sentimos que fomos bem apresentados ao mundo. Uma ideia certa deveria valer para essa vida, acertado deveria ser aquilo que nos encoraja a viver, não o que nos ensina a morrer.
Seguindo este raciocínio, nosso pensamento deu uma reviravolta: as estrelas se tornaram bolas de fogo; as constelações, desenhos que nós traçamos no céu; os livros sagrados, textos comuns; e a salvação passou a ser uma preocupação para este mundo, não outro. Esperar não faz o nosso tipo. Buscamos um conjunto de ideias que privilegiem a ação e que não contem com nada mais do que essa vida.
Deus é um delírio ao qual sacrificam-se tanto os crentes como os descrentes. Apóstolos da fé ou da razão pouco diferem. Cristãos, judeus, muçulmanos, agnósticos e ateus perderam a imanência, esse é o problema mais grave. Escolher deus ou o diabo, no fim das contas, é só uma questão de gosto. A essa questão opomos outra, muito mais importante: escolher esta vida ou esperar outra? Persistir ou transcender? Insistir ou distender? Resistir ou render-se? Existir atento ou sonhar acordado?
A cada maneira de enxergar o mundo corresponde um modo de vida. Enfrentamos o Deus único das três religiões porque não acreditamos no modo de vida que elas propõem. Não é preciso ir muito longe para descobrir que deus morreu. Em nosso tempo, o problema é quem ocupa o trono do recém falecido. Há um campo de disputa com os sucessores de Deus, a briga é grande. A soberba científica, o humanismo ufânico, a festiva pós-modernidade – não servem para nós.
Digamos o óbvio: pensa-se mal o mundo porque não vive-se nele! Nossa luta então se apresenta: encontrar aquilo que é e justificá-lo apenas por si mesmo, sem recorrer ao fora, ao além, ao depois. Encontrar aquilo que é parece muito difícil? Ponha os pés na água… sinta a pressão baixar e o arrepio frio percorrer o corpo. Abrace a pessoa querida e sinta o calor atravessar seu corpo. Perceba o barulho que o tempo faz e as ondulações que o espaço contém. Não é um estado meditativo de fuga, mas o resgate de um instante imenso. Não é mística, é presença.
Não queremos mergulhar fundo prendendo a respiração nem deixar o mar num arrebatamento divino. Estamos mergulhados em águas correntes e assim queremos estar. A ordem do dia é aprender a nadar (ou deveríamos dizer surfar?). Não para ir contra a corrente, mas para encontrar as correntezas que nos levam no sentido que nos favorece. Para compor com o fluxo das águas um destino triunfante. A cada braçada nos sentimos mais influentes, parte ativa de um todo oceânico. Enquanto só enxergarmos a falta, a vida nos afogará com seus excessos.
A imanência é o princípio ígneo da vida, fogo criador, enquanto a transcendência é uma fuga assustada, débil, vacilante, gelo mumificante. São duas formas bem opostas: de um lado, aceitar o que se apresenta necessariamente e cotidianamente como sendo tudo o que existe; de outro, contrapor-se ao sensível apostando em alguma distante exterioridade. O instante breve repleto de sentido contra a imortalidade distante esvaziada de realidade.
Há uma valentia diferente para cada modo de vida. Escolher esta vida e nenhuma outra: é isto que vemos e vivemos, nada mais! Este chão que nos sustenta, este céu estrelado sobre nossas cabeças, este vento que nos impele, esta cidade que nos cerca. Não é para os fracos. Quanta saúde não é preciso para aceitar viver uma única vez? Respondam esta pergunta. Quanta debilidade não há na pretensão de encontrar um mundo verdadeiro?
Reconhecemos bem a dificuldade em persistir apostando nesta vida. Ela é dura como mármore, difícil de talhar; misteriosa como espelho, custosa de se indagar; mas é dentro dela que encontramos a flexibilidade de prata e as pequenas certezas de ouro. Como plantas de pés bem firmes no chão, extraímos a consistência de toda relatividade.
Como dissemos, uma ideia certa vale uma vida. Sendo assim, queremos apostar neste mundo. Acreditar neste mundo, viver neste mundo. Um pequeno sim, ávido de existência, tímido de início, ganhando corpo, incisivo, tomando coragem, intensivo, traçando caminhos, recorrente, insistente, rigoroso, vital – este Sim pode tornar-se a fortaleza de toda uma existência. Incertezas demais apodrecem nossas raízes, levam nossos pensamentos a buscar uma única salvação. Façamos o contrário: Apostemos no diverso, queiramos o heterogêneo, afirmemos as forças que nos atravessam. Buscar a constância, sem sacrificar o movimento criativo e infinito da vida! Essa é uma ideia na qual apostamos tudo.
“Mas e a dor?”, nos perguntam com lágrimas nos olhos. Sim, há dor! Ela existe, ela dói, e muito. Mas e então? O mundo deixou de ser o bastante? Querer é verbo intransitivo. Não vale um querer parcial, transitivo, limitado, pequeno. Querer é também querer a dor, afirmá-la, fazer dela algo interessante, um lembrete, um tempero, uma arma, uma saída. Queremos nos tornar dignos do que nos acontece. Afirmar o mundo e a nós em sua integralidade, sem parcialidades. Somos partidários do egoísmo sem ego, do mundo não resignado.
Conhecendo bem as opções, comecemos de novo, mas sem nostalgia. Busquemos a nova infância. O ponto onde se cruzam inocência, experimentação e plasticidade. Aí nasce algo de inesperado! Queremos correr, pular, saltar por esse plano que se abre. Fomos concebidos em um mundo paralisado, todo recortado por pretensos saberes. Pois bem, sejamos o tremor que o faz chacoalhar, o terremoto de onde se elevam montanhas e abrem-se abismos. Temos só uma chance de fazer valer o estandarte de nossas certezas, a virtude de nossa potência, a coragem de existir! Amigos, não deixemos passar.
Não temos medo de ser enganados por um pensamento que nos torna mais vivos. Sabemos que os critérios da verdade epistêmica tornaram-se endêmicos e anêmicos, excessivamente rigorosos e pálidos, contagiaram as belas mentiras, constrangeram os mitos vitais, corromperam as ancestralidades, atiraram-nos no vazio. À revelia, não hesitaremos em contar belas estórias, não deixaremos de lado a vida verdadeira em nome da verdadeira vida, não tomaremos outro mundo em detrimento de um mundo outro. Se for necessário, inventaremos deuses bailarinos. Pés de valsa para acompanhar o ritmo do cosmos.
Nossa religião é a deste mundo, nossa salvação é viver. O único pecado é deixar-se reger por algo de fora, a única condenação é tornar-se moralista. Alguns erguem as mãos para o céu, nós as colocamos na terra. Mas não somos os primeiros, definiram nossa doutrina muito antes de nós: nada nem ninguém pode dar seu juízo aos nossos valores. Compreender antes de julgar, viver antes de morrer. Somos os estimadores de um artigo em franca desvalorização: este mundo, com tudo que tem direito.