Não nos dirigimos aos que consideram que a psicanálise vai bem e tem uma visão justa do inconsciente. Nós nos dirigimos àqueles que acham que toda essa história de Édipo, castração, pulsão de morte…, etc. é bem monótona, e triste, um romrom. Nós nos dirigimos aos inconscientes que protestam. Buscamos aliados. Precisamos de aliados”
– Deleuze, Conversações
Anti-Édipo é um livro escrito à quatro-mãos, por Deleuze e Guattari, lançado em 1972. “Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente” (Deleuze & Guattari, Mil Platôs I). Mais um fruto de maio de 68, movimento libertário que ocorreu na França e no qual os dois autores participaram ainda sem se conhecer. este livro que procura dar conta de 1968 juntamente com todas as lutas culturais, estudantis, proletárias, as manifestações de contra-cultura, as barricadas, o movimento feminista, o black-power, a revolução nas drogas, as inúmera novas sensibilidades. Como efeito global, depois de 1968, sabemos que algo se passou e criou novas subjetividades, o livro de Deleuze e Guattari procuram entender “o que se passou”.
Mas ao mesmo tempo, o Anti-Édipo busca entender por que a revolução de maio de 68 falhou. Se a transformação está bloqueada, então deve haver algo de errado com os agentes de liberação! E é neste sentido que podemos trazer a explicação do título: o Anti-Édipo é uma reação à psicanálise de Freud e Lacan (ainda muito influente na França) e se propõe a explorar novos caminhos para o inconsciente e o desejo. No lugar do modelo neurótico, Deleuze e Guattari trazem o modelo do esquizofrênico, como aquele que resiste ao Édipo e busca novas possibilidades.
No título mesmo já há uma agressão à psicanálise…. mas a crítica é consistente, alguns conceitos são usados, outros não. Mais o que julgar a psicanálise, Deleuze e Guattari querem entender onde foi que ela deu errado. Um título mais explicativo seria: a Anti-edipianização. No mesmo sentido nietzschiano de anti-cristo. Um livro para fazer morrer aquilo que nos mata! morte a todas as transcendências!
O anti-Édipo é um livro de ressaca, mas também funciona como uma peça revolucionária, uma engrenagem, uma máquina que se acopla, acelera, esquenta e produz!A ideia é que o livro seja usado como uma máquina de guerra, destruindo conceitos propostos pela psicanálise e colocando outros no lugar. “O que colocamos em questão é a edipianização furiosa a que se dedica a psicanálise” (Deleuze, Anti-Édipo). Não se trata de uma negação da psicanálise, mas uma superação de estruturas limitantes para o homem e seu desejo. Uma forma de psicanálise política, social e militante.
Contra a psicanálise dissemos somente duas coisas: ela destrói todas as produções de desejo, esmaga todas as formações de enunciados”
– Deleuze, Diálogos
Com esta afirmação, Deleuze e Guattari dão mostra do tamanho de suas críticas ao modelo psicanalítico, este seria fruto de nossa sociedade moderna e funcionaria como mais um aparelho de repressão, desta vez agindo diretamente em nossa produção desejante. Édipo como forma de estruturação do sujeito, como doença inoculada na criança, como ilusão e canalização do desejo. Édipo existe, mas é uma criação. Édipo existe, mas deve ser destruído (veja aqui). Édipo existe, sim, mas é este o problema!
A produção edípica consiste em rebater todas as imagens sociais do capitalismo sobre a família: tudo vira papai-mamãe, tudo passa pela triangulação. Deitado no divã, pela transferência, só se tem as mesmas imagens, fantasmas, repetições, não se cansa nunca, não se cura nunca. O social adquire significação, as dores se tornam significantes, toda produção morre em um monólogo procurando identificar papai e mamãe (o chefe é o pai, a mulher é a mãe e etc…). Ao invés de “como isso funciona?” perde-se no monótono “o que isso significa?”.
Para Deleuze e Guattari, o desejo é revolucionário, todo desejo é produção do real e transborda para fora do sujeito transformando a realidade. “Para a psicanálise, pode-se dizer que há sempre desejos demais. Para nós, ao contrário, nunca há desejos o bastante” (Deleuze, Cinco proposições sobre a psicanálise). Ao contrário do que dizem os psicanalistas, não falta nada ao desejo!
Mas esta produção desejante no sujeito ameaça as estruturas de nossa sociedade, então o capitalismo impede o desejo de fugir, ele se apropria do desejo. Qualquer fluxo solto, que não seja imadiatamente codificado, reterritorializado, controlado é um perigo enorme às estruturas capitalistas! Com Édipo, há o esmagamento do desejo.
O inconsciente maquínico e as máquinas desejantes que são o modelo original de ser do homem se reduzem ao modelo neurótico de conduta. O complexo de Édipo é o processo pela qual as crianças passam que enquadra o desejo do indivíduo, funcionando como colonização da produções desejantes; em suma, a criança é impedida de experimentar. Não no sentido de uma originalidade tomada ou perdida, mas mais no sentido de um golpe de estado, realizado pelos pais e pelos psicanalistas, colocando tudo sob regência de Édipo!
O incurável familismo da psicanálise, enquadrando o inconsciente em Édipo, ligando-o de um lado e do outro, esmagando a produção desejante, condicionando o paciente a responder papai-mamãe, a consumir sempre papai-mamãe”
– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo
Mas como exatamente isso funciona? Édipo é uma instituição, uma forma, uma conduta. A criança em seu quarto, o papai no escritório, a mamãe na cozinha. A mamãe protege, o papai é lei, a criança acata. A criança come Édipo e respira Édipo dentro de casa. Quando ela brinca, a caverna é a mamãe, o monstro é o papai; ou então, o trem maior é o papai, o menor é ela e a estação é a mamãe (para utilizar um exemplo de Klein). Há todo um processo de identificação, Freud descobriu a riqueza do inconsciente, mas o transformou em uma teatro grego, com uma peça que se repete interminavelmente.
A esquizoanálise vê a psicanálise como parte da maquinaria capitalista. Sendo assim, quando a criança se torna adulta, já está infectada, ela vê Édipo em tudo: seu chefe é seu pai, o ditador é seu pai, o poder é seu pai; sua casa é sua mãe, seu psicanalista é sua mãe. “Produz-se uma espécie de esmagamento graças à psicanálise, que dispõe de um código pré-existente. Este código é constituído por Édipo, pela castração, pelo romance familiar” (Deleuze, cinco proposições sobre a psicanálise). Depois de todo um esforço interpretativo, depois de toda uma repressão e reorientação do desejo, a máquina desejante (que é o homem) passa a reproduzir Édipo sem se dar conta.
O que Freud não percebeu é que Édipo é efeito, e não causa. Esta é uma das teses da esquizoanálise: o inconsciente provém do campo social, não do familiar. A sociedade se serve de Édipo para nos transformar em neuróticos castrados. O divã é a última territorialidade, a última cartada, o lance final de dados: “diga papai e mamãe, você precisa dizer apenas papai e mamãe!“.
Ao mobilizar a culpa e o gregarismo o capitalismo produz neuróticos (como produz carros Ford em série). E assim, o indivíduo passa a vida inteira repetindo, sem saber criar. Sua vida se torna desintensificada, lhe falta algo. A produção de intensidades lhe é roubada, ele aceita uma vida inteira de entorpecimento, comprando produtos que não precisa, procurando coisas que não achará. O neurótico não usa seu corpo para si, ele virou uma máquina social, máquina gregária, fecharam-se todas as saídas da máquina desejante. Ele tem medo. O complexo de Édipo é uma organização social capitalista que adestra as máquinas desejantes e impede o homem de experimentar! Produzindo um homem doentio, moribundo, dócil, as estruturas sociais estão protegidas!
Neste ponto, Deleuze e Guattari contrapõe com o modelo esquizofrênico. Freud nunca gostou dos esquizofrênicos, eles resistem ao Édipo. Não a esquizofrenia como doença, mas um processo de produção esquizofrênico como modo de vida.
O passeio do esquizofrênico: é um modelo melhor do que o neurótico deitado no divã”
– Deleuze, Anti-Édipo
Não podemos romantizar o esquizofrênico! O esquizo é o processo impessoal e difuso, que rompe com o neurótico. O esquizofrênico é o nômade que não se deixa capturar, que não cria raízes. Ele não se deixa ser interpretado (“ok, ok , isso é meu pai… mas é também minha mãe, e eu também, e você também!”). A experimentação é mais importante que a interpretação.
O processo esquizo não se sacia com a repetição, as intensidades lhe são essenciais, este é o único modo de desorganizar-se e criar para si um corpo sem órgãos (veja aqui). O esquizofrênico foge à classificação e à organização do poder, ele não possui uma conduta gregária: perder-se é encontrar-se, mas sempre com o cuidado de não perder-se definitivamente. Esta é a diferença da esquizofrenia como doença (hospitalizada) e esquizofrenia como modo de vida (militante).
É possível criar uma nova imanência! O anti-édipo é esta tentativa de materializar estas criações. Negar a negação edípica, fazer o niilismo cavar sua saída para fora dele mesmo! O Anti-Édipo é um livro de transvaloração de todos os valores! Sim, um niilismo ativo que busca criar a partir desta nova situação que se apresenta! Foucault disse certa vez que o “Anti-Édipo” era para ele como um tratado de ética. Sendo assim, entendemos que este livro é muito mais que um punhado de conceitos, ou um manifesto político, é antes um modo de vida, uma possibilidade de existência.
O que nos interessa é o que não é interessante à psicanálise: o que são as tuas máquinas desejantes? Qual é a tua maneira de delirar o campo social? A unidade de nosso livro está em que as insuficiências da psicanálise nos parecem estar ligadas tanto a sua profunda pertença à sociedade capitalista quanto ao seu desconhecimento do fundo esquizofrênico”
– Deleuze, Conversações
“O complexo de Édipo é uma organização social capitalista que adestra as máquinas desejantes e impede o homem de experimentar.” Isso é muito forte.
O blog é excelente, parabéns!
cursando pedagogia, curti teoria freudiana, lendo muito, faz sentido, comparando com a realidade identifico as causas, ha todo estudo dele com realidade, compreensão fácil. nao querendo contestar e sim conhecimento, justifique com teorias para melhor assimilarmos
justificar o quê?
Excelente Blog Parabéns
Texto sensacional, estou lendo o Anti-édipo para um artigo sobre a influência patriarcal na psicanálise e o seu texto foi muito pontual para a elaboração dos meus pensamentos.
Muito obrigado!
Muito interessante o texto. Re-descobri minha curiosidade pela psicanalise por esse novo viés.
Não encontrei os créditos das imagens…
desculpe, Gabriela, mas nem nós sabemos os créditos das imagens. São muito comuns na internet. Mas quando é algum quadro ou imagem específica fazemos sempre questão de colocar.
Agradeço a atenção e todos estes textos muito potentes que disponibilizam.
como hago para obtener el articulo en Español, gracias
Excelente blog!
Matou a pau ótimo texto! 😉
Se quiser olha meu youtube: fitochz
Abraços!
Estou me aproximando das leituras esquizo e recomendo o blog como um start excelente, muito bem fundamentado!
Sensação de sede e de quero ler mais.
🙂
Nossa….adorei, nunca tinha ouvido falar do anti-edipo…para mim uma novidade maravilhosa, pois sempre me incomodou com a falta de questionamentos e críticas a teoria psicanalítica de freud e tudo que ela significa. sou muito interessada neste assunto e fiquei assustada, porque não sabia da existência disto. caramba como não sabemos nada….