No decorrer dos últimos textos sentimos a necessidade de esclarecer nossa apropriação de um conceito um tanto polêmico, já que esta apropriação infelizmente causa surpresas e aversões. Refirimos-nos ao Hedonismo, esta corrente do pensamento que coloca o prazer como fim palpável e desejável para toda ação. O problema está no fato de que encontramos ocasionalmente o termo associado àquele que busca o prazer à qualquer custo, sem restrições.
O conflito de significado em torno do conceito nasceu do embate entre os materialistas e os idealistas. Dois mil anos de historiografia dominante, de cristianismo platônico, de culto à ideia acabaram por subverter o hedonismo, associando o conceito à “vulgaridade”, à “indisciplina”, à “imoralidade” etc. Inclusive, utilizamos o conceito desta forma nas academias e, muitas vezes, quando nos referimos ao “homem moderno”.
Para desconstruir essa imagem pejorativa, gostaríamos de lembrar a raiz etimológica de hedonismo, que vem do grego Hedonikos, “prazeroso”, de Hedon, “prazer”, relacionado a Hedys, “doce”. E também de mostrar onde encontramos subsídio, em termos de teoria, para entender mais sobre o conceito.
Quem trouxe a luz foi Michel Onfray no livro “Contra-história da Filosofia” (o primeiro dos seis volumes) onde ele se propõe a falar da história dos “vencidos” do embate Materialismo x Idealismo, ou seja, tratar de uma história da filosofia materialista, de filósofos que tratavam do aqui e do agora e não da ideia e do além-mundo. No livro, o hedonismo aparece diversas vezes, não em sua significação pejorativa, mas da forma como surgiu: no pensamento de filósofos que tratavam da arte de viver bem.
“No jogo dos contextos, um deles não é o menor: o das implicações ideológicas que atravessam a história das ideias e opõem uma tradição hedonista a sua familiar inimiga do ideal ascético. De um lado, Leucipo, Demócrito, Aristipo, Diógenes, Epicuro, Lucrécio, Horácio, etc. […] do outro, como contemporâneos exatos, Pitágoras, Parmênides, Cleanto, Crisipo, Platão, Marco Aurélio, Sêneca. Atomistas, monistas, abderitanos, materialistas, hedonistas contra idealistas, dualistas, eleatas, espiritualistas e defensores da linha ascética. A filosofia, em seu período grego, mas também depois, apresentou constantemente uma dupla fisionomia da qual uma só face é mostrada, apresentada. Pois, como ganhadores, Platão, os estóicos e o cristianismo impõem suas lógicas: ódio ao mundo terreno, aversão às paixões, às pulsões, aos desejos, desconsideração ao corpo, ao prazer, aos sentidos, culto às forças noturnas, às pulsões de morte. Difícil pedir aos vencedores que escrevam objetivamente a história dos vencidos…” Contra-história da filosofia 1, Michel Onfray p.31
Não temos dados suficientemente preservados para afirmar quem criou o conceito (até porque boa parte da obra dos filósofos materialistas foi desprezada e/ou queimadas), entretanto encontramos na Grécia antiga filósofos afirmando uma ética dos prazeres. Conceitos como o “supremo prazer” de Epicuro, o “prazer dos filósofos” de Diógenes de Sínope, o “bom prazer” de Aristipo de Cirene, todos constituem um hedonismo grego digno deste nome, uma aritmética dos prazeres e dores.
Em nenhum momento estes filósofos falam de uma busca cega, irracional, irrestrita ao prazer, pelo contrário, o prazer é a diretriz, e a razão o instrumento usado na obtenção deste. As obras destes filósofos são proposições sobre uma ética baseada no júbilo, como sendo um parâmetro real de consideração. São, portanto, a antítese deste paradigma de hedonismo estabelecido nos nossos tempos, afinal, cada um deles verá no corpo e na matéria possibilidades diferentes de obtenção de prazer e caberá à filosofia a discussão, a proposição, a reflexão sobre os meios desta obtenção. O prazer é um fim, definitivamente, mas não justifica todos os meios, de forma alguma.
Aproprio-me particularmente da interpretação de Michel Onfray. Para ele, o hedonismo “é preocupação de júbilo para si ao mesmo tempo que para o outro. […] O hedonismo é dinâmico e considera que não existe volúpia possível sem consideração do outro. Não por amor ao próximo, mas por interesse, fique bem entendido, pois o outro é o conjunto de humanidade da qual extraio a minha própria pessoa, o que cada um de nós experimenta. Assim, todos são o outro para mim, porém eu sou o outro para todos os outros. E aquilo que pratico na direção do outro se acha, dentro de uma perspectiva eudemonista, colocado em prática na minha direção. O gozo que proporciono encontra, no seu caminho, o gozo que me proporcionam. Teoricamente. Quando há falta de simetria, há falta de ética, ausência de regra hedonista e queda para o egocentrismo.”
Esta volta às raízes do conceito torna possível sua apropriação teórica, abre o caminho para a construção desta ética dos prazeres nos dias de hoje, em que o prazer continua uma busca real. Trata-se de revoltar-se contra a postura ascética de recusa aos prazeres, de repúdio à matéria, de culto ao ideal e, assim, descartar a hipocrisia que governa a busca do homem por uma vida de júbilo.