Skip to main content
CarrinhoClose Cart

A questão é a seguinte: o que pode um corpo? De que afetos você é capaz? Experimente, mas é preciso muita prudência para experimentar. Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes”

– Deleuze, Diálogos

– Amjad Rasmi

prudência: pru.dên.cia
sf (lat prudentia) 1 Virtude que nos faz prever e evitar as faltas e os perigos e que nos leva a conhecer e praticar o que nos convém. 2 Cautela, precaução. 3 Circunspeção, sisudez, seriedade, tino. 4 Moderação. 5 Cordura. (Michaelis)

– Amjad Rasmi

Então nos convidaram a experimentar. Ligamos a televisão e metade da programação são pessoas que não conhecemos nos dizendo como devemos nos vestir, nos portar, o que comer, como se divertir, como fazer sexo. Depois entramos no site Razão Inadequada e um em cada três textos fala de experimentar novos modos de vida. Afinal, o que devemos fazer?

Lacan esboçou uma teoria onde, ao contrário de Freud, o superego não mais proíbe, muito pelo contrário, ele diz: Goze! O mundo moderno funciona invertendo as proibições e tornando-as obrigações. É muito mais comum o cliente chegar no consultório do psicólogo dizendo “doutor, eu não aproveitei minha vida, eu não vivi plenamente” em vez de “doutor, me sinto terrivelmente culpado por algo que fiz”. Estamos acostumados a arrependermo-nos do que não fizemos mais do que das coisas que fizemos. “Você nunca fumou maconha?”, “Você nunca viajou para tal lugar?”, “Você nunca teve tal experiência sexual?”. Mas nunca encontramos este gozo do qual nos falam, no fim do dia, deitamos a cabeça no travesseiro e não encontramos o Gozo prometido.

Quantas vezes não nos vimos experimentando coisas, tomando atitudes, simplesmente por pressão social externa? Quantas vezes não fomos a lugares porque é “descolado”? Todos passam por isso, o happy hour que não acontece nada e ninguém aguenta mais. Nossa intenção neste texto é encontrar um critério de seleção para não mais cair nesta Ditadura da Experimentação.

Contra da Ditadura da Experimentação, contra o império midiático do falso consumo, contra o reinado da aparência, contra a mediocridade do caminho do meio, só temos uma única palavra: prudência. A força para selecionar os acontecimentos, se ligar ou não a certas relações. A arte das doses não é o caminho do meio, é a potência de agenciar e escolher bem os seus encontros. O aumento da capacidade de afetar e ser afetado gera a potência necessária de prudência para manter-se sempre ativo, sempre no máximo de si, na superfície. Não estamos falando de dosar no sentido de racionar, mas sim de misturar nas devidas proporções.

Quando se bebe, é preciso estar sempre no penúltimo copo… isto se se domina a arte da prudência. Por quê? Estar no penúltimo copo é estar sempre no limite, é a prudência de não cruzar uma linha de morte. Bebemos para modificar a nossa maneira de ser afetado naquele momento, eu fazemos isso para vivenciar determinadas experiências. Se bebermos o último copo, caímos inconscientes, ultrapassamos o limiar e entramos em devires que não desejávamos. Não podemos nos tornar trapos…

Não é uma crença boba, ingênua, uma experimentação porra louca, idiota. Não pode ser sem critérios, sem medidas, sem limites. Toda vivência, toda experimentação exige um um jeito, um cuidado, uma atenção. É tudo uma questão de doses, a arte das doses, a arte de colocar a prudência no lugar do medo! Não a prudência para limitar a ousadia, óbvio que não, trata-se aqui de uma prudência que permite a ousadia ir ainda mais longe!

– Amjad Rasmi

Antes de mais nada, é preciso vencer o afeto de medo. Este é provavelmente nosso maior inimigo! O medo nos impede de agir, ou nos leva a fazer coisas que não queremos. O medo é nosso primeiro inimigo, ele indica exatamente para onde não devemos ir. Nosso segundo inimigo é a racionalidade deslocada dos afetos: ela é fria demais para ser nossa dona, ela é seca demais para liderar o processo. A razão, no mundo moderno, foi elevada à categoria de deusa, de guia. Ela é importante tão somente em função dos afetos, ela existe para medir e valorar os afetos, mas de forma alguma tem império sobre eles. Não somos irracionalistas, mas sabemos do papel reduzido da razão dentro do maremoto de afetos que somos. Terceiro problema: o poder. A relação poder potência é importantíssima. O poder sempre se exerce sobre o outro. Não queremos ser aquilo que mais desprezamos: tiranos, psicanalistas ou padres.

A prudência no lugar do medo. A prudência como instrumento para se chegar mais longe. A prudência a serviço da ousadia. Se somos prudentes, é apenas no intuito de saber se devemos dar mais um passo para frente ou não. Se somos prudentes é apenas para aumentar nossa potência! A prudência não é a causa de abaixarmos a cabeça e desistirmos, ela é o fator através do qual nós enfrentamos o mundo. Assim nos tornamos ativos: quando as forças em nós querem superar-se, não apenas conservarem-se; quando o que há de forte em nós volta-se para fora, não contra nós mesmos. Queremos apenas criar as condições para que a vida se torne forte e livre. Pensando bem, não é pedir muito.

Que forças existem em nós que não têm vazão? O que podemos e ainda não sabemos? O que nos excita e estimula? Antes de mais nada, devemos entender que somos apenas uma passagem para forças maiores que nos atravessam. Como fazemos para dar vazão máxima sem nos despedaçar no processo? Como fazemos para experimentar o máximo de intensidade, mergulhar o mais fundo e voltar ileso? Prudência…

A prudência permite a experimentação, permite ultrapassar limiares, mas sem nos perdermos, sem perder a nossa natureza, sem perdermos a continuidade de nós mesmos. Trata-se de se perder apenas por um breve momento, mas retomar em seguida. Sabemos até onde podemos ir, na medida em que deixamos quem somos mas com um pé ainda dentro de nós. Prudência é a arte de estar ao mesmo tempo dentro, fora: habitar a fronteira.

Para que o extremo seja mais extremo é preciso prudência. Para que a ousadia seja mais ousada é preciso prudência. Habitar fronteiras, estar no limite de si, na superfície, externa e interna. Efetuar encontros, relacionar-se. Estamos cansados de falsa experimentação, estamos cansados de mais do mesmo, de sempre fechar-se e limitar-se cada vez mais. Se não for para efetuar trocas, então não vale a pena. Se não for para desdobrar, complicar, descomplicar, aplicar, explicar, multiplicar, então é melhor nem começar. O prudente sabe quando parar, porque ele sente que está perdendo algo. O prudente sabe mais do que ninguém experimentar porque ele faz de seu corpo um instrumento de medição, um termômetro de afetos, ele sabe quando procurar outra coisa porque sente a morte chegando: aquilo não dá mais pra ele, é pouco. Talvez poucas coisas sejam mais importantes hoje em dia do que ser prudente.

Texto da série:

Regime Ditatorial de Valores

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
4 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
AntimidiaBlog
10 anos atrás

Lendo o texto vi na coluna lateral que uma das principais tags do blog é afirmação, e pode ser que ela esteja envolvida com a experimentação, na busca daquela coisa para afirmar aquilo lá.

Sofia
Sofia
10 anos atrás

“É muito mais comum o cliente chegar no consultório do psicólogo dizendo “doutor, eu não aproveitei minha vida, eu não vivi plenamente” no lugar de “doutor, me sinto terrivelmente culpado por algo que fiz”. Estamos acostumados a arrependermo-nos do que não fizemos mais do que das coisas que fizemos. “Você nunca fumou maconha?”, “Você nunca viajou para tal lugar?”, “Você nunca teve tal experiência sexual?”. Mas nunca encontramos este gozo do qual nos falam, no fim do dia, deitamos a cabeça no travesseiro e não encontramos o Gozo prometido.” Rafael, muito bom teu texto. Infelizmente a grande maioria das pessoas… Ler mais >

Nichollas Marques
Nichollas Marques
Reply to  Sofia
4 anos atrás

Exato!
É por isso que, como Heidegger expõe brilhantemente, é preciso buscarmos a vida autêntica! Esses capitalistas consumistas, afim de lucrar e ganhar dinheiro, promovem a sociedade de consumo. Os imperialistas, querendo destruir as barreiras alfandegárias (para que a grande empresa possa absorver a pequena; para que os grandes banqueiros possam acumular riqueza e subjugar praticamente toda a população), promovem o individualismo! Apenas a busca pela vida autêntica consegue nos libertar desse calvário, e permitir-nos evitar o que eles querem nos lançar: o Admirável Mundo Novo de Huxley!

Nichollas Marques
Nichollas Marques
4 anos atrás

É por isso que, como Heidegger expõe brilhantemente, é preciso buscarmos a vida autêntica! Esses capitalistas consumistas, afim de lucrar e ganhar dinheiro, promovem a sociedade de consumo. Os imperialistas, querendo destruir as barreiras alfandegárias (para que a grande empresa possa absorver a pequena; para que os grandes banqueiros possam acumular riqueza e subjugar praticamente toda a população), promovem o individualismo! Apenas a busca pela vida autêntica consegue nos libertar desse calvário, e permitir-nos evitar o que eles querem nos lançar: o Admirável Mundo Novo de Huxley!