O que a burguesia queria fazer não era tanto eliminar a delinquência. O essencial do objetivo do sistema penal era romper aquele continuum de ilegalismo popular e organizar um mundo da delinquência”
– Foucault, Sociedade Punitiva
A delinquência é efeito esperado do poder, aquele que não pode ser recuperado. Claro, ao se traçar linhas novas, alguns ficam de fora, outros dentro. Óbvio, ao se normalizar, disciplinar, treinar, não serão todos que acompanharão o ritmo desta nova sociedade.
A máquina trabalhava para desmarginalizar, e a marginalização era apenas um efeito colateral”
– Foucault, Sociedade Punitiva
Neste processo, utilizou-se dois recursos simples:
- Instrumento ideológico: tratar o delinquente como um inimigo social, perigoso, do qual todos deveriam manter o máximo de distância possível. “O delinquente está em guerra com a sociedade”, ele é a face obscura, o oposto, e é um risco se aproximar dele;
- Instrumento prático: Prisão. Sim, se os delinquentes são monstros anormais, bandidos, assassinos e malfeitores, então é necessário isolá-los dos outros. Não expulsá-los das instituições, mas afundá-los mais ainda dentro delas. A prisão é um espaço de conhecimento, de separação, de categorização, de saber.
A disciplina veio pra ficar, ela corre em paralelo ao modelo jurídico (da mesma forma que hoje a sociedade disciplinar também convive com a de controle). A disciplina prisional apenas reflete o ponto máximo onde incide um modelo para toda a sociedade: disciplina, poder, organização, controle técnico, classificação, correção, fonte de objetificação e conhecimento.
O pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão?”
– Foucault, Vigiar e Punir
Sim, olhando da perspectiva do todo, a prisão faz parte de um modelo de sociedade, desta forma, não pode ser corrigida pontualmente. Ela é como o ponto cego do olho, que carrega o nervo óptico. Um ponto cego necessário para o funcionamento do todo. O delinquente passa a fazer parte deste sistema, eles estão bem próximos, quase do nosso lado, podemos encontrá-los virando a esquina. Aparecem nos noticiários policiais, formam gangues, aterrorizam os cidadãos de bem. É claro que precisamos de policiais, é claro que a intervenção militar é aceitável, olhe só os delinquentes andando à solta.
A figura do delinquente se opõe à do carcerário, cada um está de um lado da lei. Mas, de certa forma, não há uma oposição real, porque a delinquência está integrada na sociedade, ela faz parte como efeito real e impossível de ser eliminado. Mas o delinquente, em vez de ser eliminado, na verdade, estabelece um lugar imprescindível para a economia e a forma de vida atual. Não há espaço para desperdício, não há fora, não é possível o degredo. A nova moral é “tolerante” o bastante para subordinar aqueles que não se enquadram. Convivemos com os delinquentes, mas eles são “colocados em seu lugar”, o poder cria espaços, isola, regula.
A delinquência, ilegalidade dominada, é um agente para a ilegalidade dos grupos dominantes”
– Foucault, Vigiar e Punir
A ilegalidade e a delinquência adquirem papel na sociedade, fazem parte de seu funcionamento. Passa-se do legal para o ilegal de maneira gradual. Neste campo, algumas ilegalidades serão toleradas, outras farão parte de uma economia social e outras serão simplesmente suprimidas.
A delinquência tem um papel econômico importantíssimo. Ela permite que famílias inteiras fiquem reféns dos altos muros de seus condomínios caríssimos; a própria vida está salva, em sua forma submetida. E é também esta mesma delinquência que vende maconha para a mãe, cocaína para o pai e LSD para o filho. É o delinquente que gira a roda de corrupção dos políticos na luta contra a legalização das drogas e etc. Polícia, prisão e delinquência são engrenagens que giram sempre juntas.
A delinquência era por demais útil para que se pudesse sonhar com algo tão tolo e perigoso como uma sociedade sem delinquência. Sem delinquência não há polícia. O que torna a presença policial, o controle policial tolerável pela população se não o medo do delinquente?”
– Foucault, Microfísica do Poder
Toda figura marginalizada serve de ameaça: marginais, ladrões, comunistas, terroristas, traficantes, imigrantes, prostitutas. Qualquer figura serve para preocupar o homem de bem, cujos bons costumes estão sempre em perigo. Para além da lei, a prisão. Trata-se de mais um personagem imprescindível para o bom funcionamento de nossa sociedade.
O delinquente costura o tecido social de cima a baixo, o faz funcionar. Não é uma figura a ser eliminada, mas sim gerida. A lei existe para gerir delinquentes, controlar a sociedade, não para suprimir o crime. Nosso modo de vida necessita da imagem do delinquente tanto quanto a igreja precisa da figura do Diabo! É um personagem que faz parte do teatro social.
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Esse livro é sensacional! Escrevi um post sobre o sistema penitenciário e Foucault foi fundamental =)
Muito bom o texto, ótima síntese sobre tal ciclo que visa antes de tudo continuar ciclo. Quanto às últimas colocações, lembrei-me de algumas passagens do livro Os Sentidos da Paixão -Sobre o Medo, texto de Marilena Chaui: “Pura privação e negação, o diabo é essa paradoxal não-entidade que só vem ao ser pela mediação de outrem, carecendo que alguém lhe faça a doação de si para que venha à existencia e seja combatido pelo cavaleiro cristão. Porque necessita de ancoradouro onde depositar seu nada, o diabo vem ao ser através dos inimigos. Pagãos, judeus, bárbaros, sarracenos, mouros, turcos, negros, bruxas,… Ler mais >
Na real, essa relação funcional da delinquência com os aparatos de repressão e vigilância também nos possibilita observar a própria relação de dependência funcional entre a loucura e a sanidade. O louco como objeto da psiquiatria e a psiquiatria como verdade médica normalizante.
Enfim, ótimo artigo!
Sensacional seus escritos. Foucault é Foucault! Amante dos livros dele. <3
Muito bom!! Me ajudou muito.