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O que é a Verdade? Esta é a pergunta que Michel Foucault passou a vida a responder. A pergunta não é simples, porque ele parte do princípio de que a Verdade não é um animal assustado atrás de um arbusto, não está escondida por trás do Véu de Maia (como gostaria Schopenhauer). Ele também recusa que a Verdade seja uma correlação perfeita entre ideias e corpos (como gostariam alguns cientistas). Será que a verdade pousa tranquilamente do céu das ideias no solo da materialidade? Não, a Verdade não está em cima nem embaixo. Foucault inspira-se em Nietzsche, o caminhante de Sils Maria, para pensar uma verdade errante. Não no sentido de que ela esteja perdida, pois não há um lugar onde queira chegar. A Verdade caminha em público, mas nunca em linha reta.

A partir dessas questões, Foucault estudou a sedimentação do saber, o tomar forma das Verdades. Por isso, ele definiu a sua filosofia como um diagnóstico das diversas verdades que o pensamento assume na história. Por isso, é melhor dizê-las assim, no plural. As Verdades vão além do campo dos saberes, elas fazem parte de jogos de poder, se misturam com os acontecimentos e aparecem por todo o lado em disputas. São cabos de guerra epistemológicos, no qual as verdades são puxadas, deformadas, esticadas, comprimidas, apropriadas por técnicas de veridicção. Cada período histórico pode ser definido por um conjunto de verdades vivas em fricção.

Foram vários os campos em que Foucault pensou sobre as verdades: ele não era historiador, mas compreendeu como a força da história influenciava na formação de nossa subjetividade; não era sociólogo, mas mostrou melhor do que ninguém como a nossa sociedade se organizou em torno de determinadas máximas; não era geólogo, mas buscava entender os estratos enquanto escavava montanhas e mais montanhas de papéis. Então, o que era Foucault? Para dar uma resposta improvisada, digamos que ele era um tipo de costureiro, porque soube ver os panos com os quais se vestiam subjetivamente os corpos.

“O tempo veste nossa subjetividade”, diria Foucault, em uma frase que poderia até ser retirada de Heidegger, mas que foi aperfeiçoada pelo filósofo francês com a ajuda de Nietzsche. Nesta concepção, a ideia central é que o indivíduo é um pedaço de fatalidade, que só pode ser compreendido como alguém que habita seu tempo. Em outras palavras, a compreensão da Verdade do Ser só se realiza dentro de um horizonte temporal, relacional, em que as Verdades se encarnam na forma de pensamentos e comportamentos determinados. É isso que faz da filosofia um diagnóstico das verdades, como sintomas se manifestando em nós, e faz da história um desvelar da verdade nos sujeitos. Ela se manifesta como cortes e costuras feitas sobre um tecido de carne e osso, que se estende pelo tempo e espaço.

Assim, podemos dizer que nossos corpos são disciplinados dentro da verdade, como melancias quadradas, adaptadas para não ocupar muito espaço. Os sujeitos crescem em um campo de veridicção restrito pelo reconhecimento. Nós sequer percebemos esse processo de assujeitamento, justamente porque as Verdades lhe emprestam ares de naturalidade. Quando olhamos bem, percebemos que os corpos foram vestidos em roupas apertadas, assim como nossos pensamentos foram costurados em adereços excessivamente formais. Estamos o tempo todo incomodados com algo que nem sabemos o que é, nos acostumamos com a gravata nos sufocando.

Apesar de tudo, Foucault descarta a hipótese repressiva, seria ingenuidade apostar tudo na frase: “rasguem suas roupas, libertem-se!”. Até porque, quando falamos em Verdades, não estamos falando apenas de sistemas apertados. Há também as roupas largas demais, que exigem uma adaptação de crescimento. A mais nova metamorfose do capital trabalha com a incitação do desejo: “o que mais você pode ser? Vamos lá, surpreenda-se!”. Assim, a depender do momento, nos apertamos para caber ou nos exercitamos para preencher. De qualquer maneira, somos sempre assombrados pelo paradigma da insuficiência.

A metáfora da costura é boa, e precisa ser levada ao limite para ser bem compreendida. O que nosso filósofo diz, com agulha e linha na mão, é que a Verdade é uma colcha de retalhos. Não há uma alma amarrotada por trás do tecido fabricado, não há uma essência eterna escondida por baixo dos panos. A subjetividade é um efeito das Verdades moldando o corpo e a alma segundo a moda de cada estação. A temporada muda, as linhas são outras, os cortes variam, mas a colcha permanece sempre múltipla – aí estão tanto a sina quanto a própria possibilidade de superação.

Se tivesse escrito um conto fantástico, Foucault descreveria as roupas ganhando vida própria e saindo a falar por si, desconsiderando e até zombando de seus próprios usuários. A trama se complicaria quando pequenos grupos começassem a desmanchar os pontos, aprendendo a costurar, manejando os tecidos por sua própria conta. Daí em diante, as perguntas seriam: como descosturar roupas que não caem bem? Como transformar velhas linhas em novos nós? 

A premissa de Foucault é que o tempo veste os corpos e as almas, ele se manifesta como atemporal, mas não passa de uma roupa velha com cheiro de armário. Assim, ele aposta na capacidade que temos de perceber as costuras para, quem sabe, fazer e desfazer aquilo que somos com linhas e tesouras nas mãos. Várias e várias vezes o filósofo mostra que o tempo é um tecido maleável, dobrado em função do poder, mas não faz isso sem mostrar que nós também o manipulamos. Qual é a dificuldade? Ora, qualquer um que já costurou sabe, não há como encontrar as linhas sem virar o tecido do avesso.

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Luis Felipe
Luis Felipe
2 meses atrás

Excelente texto. Consigo compreender textos filosóficos quando leio na sua perspectiva. Parabéns