Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um carrasco […]; puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro […] Os quatro membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira […], depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo à palha ajuntada a essa lenha […] Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite”
– Foucault, Vigiar e Punir
De um lado temos o suplício, maneira de punir violenta, espetacular, grandiosa, ostentosa, espalhafatosa. Do outro lado, temos o regulamento da “casa para os jovens detentos” em Paris:
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Art. 17. — O dia dos detentos começará às seis horas da manhã no inverno, às cinco horas no verão;
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Art. 18. — Ao primeiro rufar de tambor, os detentos devem levantar-se e vestir-se em silêncio, enquanto o vigia abre as portas das celas;
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Art. 19. — A oração é feita pelo capelão e seguida de uma leitura moral ou religiosa;
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Art. 20. — Vão ao trabalho, que deve começar às seis horas no verão e às sete horas no inverno;
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Art. 21. — Às dez horas os detentos deixam o trabalho para se dirigirem ao refeitório;
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Art. 22. — Às dez e quarenta, ao rufar do tambor, formam-se as filas, e todos entram na escola por divisões;
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Art. 23. — Às doze e quarenta, os detentos deixam a escola por divisões e se dirigem aos seus pátios para o recreio;
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Art. 24. — À uma hora, os detentos devem estar nas oficinas: o trabalho vai até às quatro horas;
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Art. 25. — Às quatro horas, todos deixam as oficinas e vão aos pátios onde os detentos lavam as mãos e formam por divisões para o refeitório;
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Art. 26. — O jantar e o recreio que segue vão até às cinco horas: neste momento os detentos voltam às oficinas;
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Art. 27. — Às sete horas no verão, às oito horas no inverno, termina o trabalho; faz-se uma leitura de um quarto de hora, tendo por objeto algumas noções instrutivas ou algum fato comovente;
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Art. 28. — Às sete e meia no verão, às oito e meia no inverno, devem os detentos estar nas celas
– Foucault, Vigiar e Punir
Do fim do século XVIII ao começo do século XIX vemos o fim do suplício e o começo de uma outra maneira de punir. A primeira tinha no corpo e na dor a sua especificidade: quanto maior a punição, maior a dor. A segunda age sobre o tempo e o espaço: quanto maior a punição, maior o controle sobre o lugar e a atividade.
Entre 1830 e 1848 desaparece o suplício, exclui-se o castigo, some a encenação da dor. A pena não envolve mais o sofrimento. Ela se desloca para outro terreno: a restrição da liberdade. No lugar de sensações insuportáveis e marcas profundas na pele, ela agora agirá na “suspensão de direitos”.
A punição começa a se tornar cada vez mais uma coisa velada, sai dos olhos do público. Há aí uma redução da intensidade, mas certamente também uma mudança de objetivos. Certo, mas se a pena se dissocia da dor física, o que seria uma punição incorporal? Há uma maneira de punir que não seja pela dor? Se não é mais o corpo que será punido, o que podemos dizer da alma?
O aparato da justiça punitiva tem que ater-se, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea”
– Foucault, Vigiar e Punir
A passagem do fato, do corpo, do delito, para a motivação, a alma, a vida, prova que o ato de punir se tornou contínuo e não mais pontual. O que se julga agora é bem diferente de crimes, e a operação penal, como um todo, começa a extravasar do campo jurídico.
Ou seja, sob a suavidade humanista dos novos castigos, esconde-se um deslocamento subterrâneo, inaudito. Há aqui novos objetivos, novas verdades e, portanto, novos papéis. É todo um saber, uma técnica e um discurso que começam a se formar e entrar em ressonância. Em seu livro Vigiar e Punir, Foucault procura entender o que foi esta mudança:
Objetivo deste livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apoia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade”
– Foucault, Vigiar e Punir
Por onde devemos começar a história da alma moderna? Simples, por esta nova maneira do poder se impor aos corpos. Primeiro é preciso entender que toda esta maquinaria não tem apenas a função de reprimir, isso seria pouco, o novo objetivo agora passa por formar, produzir alguma coisa. Segundo, a punição será agora mais que o efeito de infrações ou regras que são quebradas, ela faz parte de uma tática política, um processo pelo qual o poder se aplica. Terceiro, a punição deve ser investigada não apenas no campo do direito penal, mas também como o campo onde nascem as ciências do homem. E por último, diz Foucault, o aparecimento da “alma” como efeito da penetração do poder nos mais variados campos, conferindo-lhe uma aura científica.
Mas calma, não devemos nos iludir! O poder era, e continua sendo, uma maneira de agir sobre o corpo. Se não há mais poças de sangue, nem membros decepados, isso não significa que ele se tornou mais fraco ou brando. Muito pelo contrário, sua penetração agora é muito maior, ele apenas se tornou imperceptivelmente ardiloso.
O poder nunca se esquece dos corpos e nós, leitores de Foucault, não podemos nos esquecer disso. Ele age sobre o corpo, nas suas mais variadas forças e fraquezas, utilidades e incapacidades, suas protuberâncias e seus buracos, suas repartições. O que pode o corpo? Resistir ao poder.
Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso”
– Foucault, Vigiar e Punir
Na hipótese de Foucault, a mudança se faz de um modo claro e inequívoco: com o fim do suplício, com a morte do Rei, o poder de punir se mistura ao poder de disciplinar, que quer ao mesmo tempo tornar submisso e produtivo. Tolher, mas também formar; proibir, mas também educar; reprimir tanto quanto capacitar. É a soma de punição castradora e vigilância doutrinadora que se tornará óbvia nos estudos genealógicos de Foucault:
A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da ‘alma’ moderna”
– Foucault, Vigiar e Punir