A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta. […]
Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.”– Alberto Caeiro
A história da filosofia, da antiguidade à modernidade, nos mostra uma crescente desqualificação da matéria. Os atomistas ficaram para trás. De Aristóteles à Aquino, todo livro de filosofia que quisesse ser levado a sério deveria falar das coisas (supostamente) mais elevadas primeiro, tratar de temas como a alma e a metafísica antes de falar do corpo e das coisas. O materialismo foi constantemente rebaixado por ser, ao longo de milênios, considerado menos importante, uma temática menor.
A preocupação com a natureza material das coisas ficou represada nos pré-socráticos. Embora tenhamos exceções como Epicuro, poucos foram os filósofos que deram aos corpos a mesma importância e centralidade que davam às ideias. Em sua maioria, os filósofos consideravam que as coisas não tinham a mesma lógica imutável das ideias e portanto não podiam fundamentar nenhum tipo de conhecimento verdadeiro.
Essa cisão entre um mundo racional e um mundo material persistiu até o renascimento, quando a física moderna reclamou para si uma ciência das coisas materiais, das forças e do movimento. O que impressiona é que a filosofia da época persistiu, em sua maioria, dualista. Descartes ficou famoso por duvidar do corpo e fundamentar a existência na ideia de que se pensa. Essa tendência, não só de separar as coisas das ideias, mas de privilegiar as últimas, tornou-se chão comum para a filosofia de maneira geral.
Espinosa surge nesse contexto como um enorme desvio, como uma fissura inesperada no edifício filosófico. Aliás, pensando historicamente, fica difícil entender como um judeu instruído em sua fé e estudioso da tradição escolástica pôde tomar um caminho tão diferente. Além de ousadia, denota uma enorme coragem, uma confiança nas próprias ideias.
Em primeiro lugar, a Ética de Espinosa desconsidera qualquer possibilidade de dualismo. A diferença entre matéria e pensamento foi usada como argumento a favor do dualismo, da existência de outros mundos, do rebaixamento dos afetos, da moralização do corpo. O filósofo dirá que, se são diferentes, é apenas porque são expressões diversas de uma mesma natureza, que não deixa por isso de ser uma só.
Deus sive Natura, o radical monismo espinosista faz da existência uma só, apesar da sua infinita variação. Portanto, a enorme querela em torno da questão da separação entre corpo e alma resolve-se da seguinte maneira: a alma é tão corpo quanto o corpo é alma, o que percebemos aparentemente como separação é apenas a expressão de dois atributos diferentes de uma mesma natureza.
Essa ontologia radical faz da filosofia de Espinosa uma grande vertigem. Ela vira de ponta-cabeça o pensamento, chacoalha os preconceitos e bota de novo as ideias no lugar. Não há predominância da razão sobre o corpo. Não há vontade livre e separada das paixões. Não há império da consciência. Não há sequer hierarquia entre homem e animal. Daqui em diante, só poderemos pensar na natureza como uma comunidade absolutamente infinita e diversa, sem com isso justificar nossos delírios de superioridade.
[Os homens] inventam mil e uma coisas e interpretam a natureza da maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles”
– Espinosa, Tratado Teológico-Político, Prefácio
Ora, retirada de seu altar, de sua privilegiada proximidade de Deus, a razão precisará ser corrigida. Será preciso repensar o intelecto, religá-lo de maneira potente à vida. Para isso, Espinosa elege um novo modelo: o corpo. A mente é parte integrante do corpo e, se buscamos uma razão que nos favoreça, não podemos ignorá-lo. Só alcançará um conhecimento prático quem for capaz de levar o corpo a sério.
A pequena física espinosista fortalece a sua ética. Não há oposição, há um materialismo dinâmico, que leva em consideração o encontro entre os corpos na produção das ideias. E que aposta na produção de ideias como interferência nos encontros. A razão recupera sua potência quando, ao invés de se separar, se liga à natureza comum dos corpos em relação.
A ciência dos afetos é o resultado direto dessa maneira de pensar. As paixões não são absolutamente ilógicas, os afetos podem ser definidos, a prática do pensamento pode intensificar a vida! Eis os novos ganhos obtidos pelo abandono de velhos preconceitos. A filosofia, ao recuperar o seu interesse pelas coisas materiais, torna-se novamente uma ferramenta relevante para o pensamento.
Ao contrário do que antigos sábios diziam, não é preciso afastar-se dos afetos para viver bem. A Ética de Espinosa preza por um corpo ativo que produza ideias claras, verdadeiras noções comuns das relações que estabelecemos com o mundo. Espinosa pôde pensar dessa maneira porque não teve medo da matéria, porque não desconfiou da vida, não se deixou enganar pela tradição idealista.
Espinosa é materialista por tratar corpo e alma em pé de igualdade? Bom, se é isso que se quer dizer com a acusação, então o filósofo é culpado. Mas por que será que essa maneira de pensar foi tida como subversiva? Por que tratar alma e corpo em pé de igualdade valeu a Espinosa a maldição de todas as religiões? A resposta não é difícil: ao nivelar os atributos divinos, ele promoveu um questionamento total dos valores teológicos dominantes. Ao valorizar a matéria, ele contesta a tentação e o pecado. Ao qualificar a alma como corpo, ele possibilita novos modos de vida, mais preocupados em viver do que em morrer.
Spinoza fala em infinitos atributos: a extensão e o pensamento são os que podemos conhecer. E os outros o que seriam?
Ele não chega a fazer essa discussão, mas fica implícito que nós não temos acesso a toda infinidade de atributos da natureza
Daqui em diante, só poderemos pensar na natureza como uma comunidade absolutamente infinita e diversa, sem com isso justificar * “nossas “delírios de superioridade.
Obrigado 🙂