No espaço infinito, inumeráveis esferas brilhantes. Em torno de cada uma delas giram aproximadamente uma dúzia de outras esferas menores iluminadas pelas primeiras e que, quentes em seu interior, estão cobertas de uma crosta rígida e fria sobre a qual uma cobertura lodosa deu origem a seres vivos que pensam; – eis aí a verdade empírica, o real, o mundo”
– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, §1
Schopenhauer quer fazer a mais imanente das metafísicas. Será possível? Sem apelar para outros mundos, sem razão pura legisladora, sem idealismos. O mundo, em sua nudez assustadora, é isso que ele quer. Dentro do espaço infinito há uma galáxia, dentro desta galáxia uma estrelinha, girando em torno desta estrela, um planetinha: nós o chamamos de Terra. Nesta tal de Terra existem coisas insignificantes que nós batizamos de vida e dentro deste conjunto surgiram animais capazes de consciência e pensamento: Eis o ser humano!
Simples assim, não passamos de primatas capazes de sensação, pensamento e ação. O mundo é para nós aquilo que podemos sentir, aquilo que captamos com os nossos sentidos, tanto externos como internos. Vemos, ouvimos, cheiramos, mas ao mesmo tempo nossas vísceras também nos informam o que está acontecendo internamente. O corpo é um objeto entre objetos. Com ele, formamos uma imagem das coisas que nos rodeiam, ou seja, o mundo é como nos aparece.
O Fenômeno é aquilo que aparece aos nossos sentidos, ele é a casca, a crosta externa da coisa. Sendo assim, a primeira frase de Schopenhauer em sua obra magna é:
O mundo é minha representação”
– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, §1
Tudo começa assim: Representação. Afinal, tudo acontece para um sujeito que percebe. Ele é o sustentáculo de seu próprio mundo, sem ele, não há representação. Toda massividade do universo encontra-se na vaporosidade da consciência. As imagens nascem nesse amálgama entre corpo e mundo. Sujeito e objeto, essa é ligação que chamamos de Representação. Um não existe sem o outro. Um começa onde o outro termina. Tal como Kant nos mostrou, as Representações nos chegam através dos sentidos e se submetem ao nosso princípio de razão. Pensamos tudo sob a forma pura de tempo-espaço e causalidade. O vir-a-ser possui um quadro de fundo, possui um palco, uma moldura onde a ação acontece.
A Representação é o conceito que garante a realidade composta de sujeito-objeto. O cérebro organiza tudo para nós, todos os nervos sensoriais saem da superfície do corpo e vão até esta massa cinzenta de processamento. O cérebro funciona da mesma maneira que o estômago: digere sensações e retira aquilo que é necessário, o resto passa adiante, não importa. Dois tempos: as impressões trazem os dados, o intelecto os organiza. Os sentidos são prolongamentos do cérebro até o mundo, os músculos são prolongamentos do cérebro para agirmos no mundo. A primeira conclusão: fazemos parte deste mundo, somos objetos entre objetos. Os fenômenos são o que percebemos, o que não percebemos é o númeno (aquilo que não formamos representação).
Somos feitos de sensações, nossa consciência é a prova disso. O que há nos bastidores? Ninguém sabe! Kant chamou de coisa-em-si e se aventurou timidamente, se dispôs a colocar o pé na água numênica, mas ficou na margem, com medo de se afogar neste mar apavorante e sinistro. O que há além da representação? Calma, não precisamos atravessar o véu de Maia ainda, fiquemos um pouco mais na superfície, nas aparências. Cavernas escuras nos esperam, tomemos um pouco de Sol antes desta jornada desalumiada.
Esta distinção, entre fenômeno e coisa em si, Schopenhauer deve à filosofia kantiana. O filósofo pessimista se considera o único e verdadeiro herdeiro do pensador de Konigsberg, e um audacioso continuador. Por que continuador? Porque só precisamos de Platão e Kant para entender sua filosofia. Por que audacioso? Porque Kant recuou frente ao abismo da coisa em si, enquanto Schopenhauer mergulhou nela e viu que horrores esta lhe reservava. O Buda de Frankfurt nunca mais foi o mesmo depois desta descoberta, apesar de não ter se arrependido do mergulho em águas profundas e escuras.
Continuemos… a matéria é seu fazer efeito. Sua sucessão no espaço-tempo é tudo que temos. Nosso corpo sofre as ações deste mundo, que se abate sobre ele, recai com força. Somos afetados, nosso conhecimento provém destes afetos, que se organizam em nosso intelecto. A representação é este encontro sujeito-objeto, é a maçã que cai em nossa cabeça. A ciência é a arte dos encontros superficiais. Ela anota, recolhe dados, junta experiências e cria hipóteses, mas nunca olha o que existe por trás das coisas, em sua essência. É sempre uma relação, uma dinâmica. O cerne da coisas está vetado à representação e à ciência, não importa a potência de seus telescópios e microscópios.
A metafísica (que significa literalmente: para além da física) é aquilo que está além de nossa intuição, além do espaço, do tempo e da causalidade, aquilo que simplesmente não é representável pelo nosso entendimento. A coisa em si não pode ser compreendida da maneira comum que pensamos, não podemos atingir o conhecimento em si das coisas. Tudo que conhecemos é apenas o conhecimento para nós. Esta distinção é essencial para entender Schopenhauer, ele afirma que existe algo por detrás de nossa representação, algo maior, mais profundo, mais misterioso.
A ciência tenta responder, mas não consegue. No fim das contas, pela física, tudo e nada é explicado! Ela gira em torno das coisas, sem nunca compreender o porquê profundo delas. A física, diz o filósofo lembrando novamente Kant, não se sustenta sem a metafísica. Apenas fórmulas matemáticas não matam a nossa sede de entender o mundo. O núcleo das coisas nada tem a ver com sua superfície. Há essa necessidade metafísica no homem de ir para além dos fenômenos. Também, pudera… olhem para o mundo! Ele nos espanta com sua grandeza!
O ser humano se admira com a existência e isso faz dele o mais metafísico dos animais. O que é tudo isso? De onde viemos? Para onde estamos indo? Estas respostas são dadas principalmente pela religião, mas esta não passa de metafísica barata, platonismo para o povo, respostas fáceis. A religião está baseada na fé, por isso é rasa, queremos mais, e Schopenhauer nos oferece.
A filosofia mete o bedelho e quer dar sua própria explicação, mas o faz com critério, com método, com fundamento. Estamos presos na caverna, vendo imagens refletidas na parede. Como quebrar os grilhões e ultrapassar os fenômenos? O investigador determinado a compreender precisa voltar-se para dentro se quiser encontrar os mistérios últimos e fundamentais. Ali está a chave, o enigma do mundo! Daremos agora nossos passos nesta direção. Coragem, companheiros de viagem, o percurso é recomendado apenas àqueles que querem decifrar o enigma fundamental da existência.
Embora ninguém, através do véu das formas da intuição, possa conhecer a coisa em si; por outro lado, entretanto, cada um carrega a esta dentro de si, sim, é ela mesma: por conseguinte, ela tem de ser acessível de algum modo”
– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, cap 17
Show!!
AEEEE, muito show, por mais postagens de schopenhauer PLEASE!!!!!!!!. Voçes são demais.
Adoroooo Shopenhauer, quero ler mais coisas sobre ele…
Então agora é a chance! Lançaremos textos de Schopenhauer todo domingo!
Sou apaixonado por Schopenhauer. Sugiro um texto sobre a Vontade agindo no indivíduo e causando sofrimento.
Legal Abraão! Já está agendad o um texto desses! Todo domingo sai um novo =D
Adorei o texto! Gostaria muito de entender o ponto onde Nietzsche se separa de Shopenhauer. Será que seria o fato de em Nietzsche não existir a separação da coisa em si e fenômeno? Ou estou enganada? Um abração
Olha, Ana…. a resposta é um pouco mais complicada que isso.
Sim, Nietzsche abole a separação Fenômeno/Coisa-em-si.
Mas a diferença principal e a postura nietzschiana ativa e a postura schopeuriana negativa
Veremos melhor isso nos próximos textos.
Obtigada Rafa!
Magnânimo
Muito Bom. Parabéns pelo trabalho!
o livro completo tem contas páginas. gostaria de te-lo completo.
Excelente…
Iniciei a leitura do livro O mundo como vontade e representação. Quando falei que comprei esse livro, disseram que eu não iria compreender nada. Que eu deveria ter escolhido um outro livro. Disseram que não chegarei a conclui-lo. É o primeiro livro de um filosofo que estou lendo. Se me perguntar por que escolhi Schopenhauer, não saberei lhe dizer. Estou gostando, apesar que tenho que reler algumas partes para compreender. Está sendo desafiador. E lendo o seu texto, sinto que estou indo bem na compreensão do que o autor quer nos dizer.