Se Schopenhauer encontrou o princípio que anima o mundo, o faz girar, que move a Terra em torno Sol, mas também faz crescer as plantas, faz o animal caçar e o ser humano sofrer, por onde continuar? A Vontade é soberana, já sabemos, mas podemos fazer alguma coisa para diminuir seu impacto nefasto em nossa vida? Temos alguma alternativa? Schopenhauer mostra que a Estética é uma das maneiras de “curar-se” dos males da Vontade. Sim, aqui veremos o intelecto, pela primeira vez, livrar-se da opressão da Vontade, mesmo que de forma fugaz e temporária!
Encaramos o abismo e ele nos encarou de volta! Não foi bom! Queremos agora desviar o olhar do mundo como Vontade e voltá-lo novamente para o mundo como Representação! O que é este mundo? São ideias que se manifestam, não é mesmo? São fenômenos, diz Schopenhauer, que exprimem graus cada vez mais elevados de objetivação da Vontade. Seria o intelecto capaz de considerá-las sem que estas afetem por Ela? Seria o intelecto capaz de se tornar um espelho límpido e objetivo do mundo à sua volta? Sim, é este mergulhar no mundo que nos faz esquecer a nós mesmos e as duras verdades que encontramos anteriormente.
Não pensamos aqui em bebidas alcoólicas ou em ópio: primariamente, o que se requer é uma noite calma e bem dormida, um banho frio e tudo o que, pelo efeito calmante da circulação sanguínea e das paixões, proporciona à atividade cerebral uma preponderância natural”
– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, cap. 30
Schopenhauer procura aqui um estado de pura objetividade onde tudo adquire claridade. Voltamos para a caverna, com suas imagens, mas agora queremos algo puro, a pureza das ideias se manifestando no mundo, apenas a sua luz. A Vontade se exprime como forças naturais, gravidade, resistência, forças magnéticas, forças químicas; e forças orgânicas, vegetais, animais, seres humanos. O mesmo se passa com a representação na forma de Ideias. Os fenômenos mudam, a Ideia é o que permanece. Na contemplação estética, vamos para além dos fenômenos, mas agora em direção às Ideias, sua forma arquetípica. Neste processo, o Eu some, esquecemos de nós mesmos e nossas dores e sofrimentos vão juntos. Deixamos de lado a coisa em si e nos concentramos nas intuições puras.
O puro sujeito de conhecimento torna-se um olho cósmico, perdeu a individualidade, com isso também toda a angústia de estar jogado em um mundo sem sentido. A Estética tem a função de desviar o olhar da coisa em si, de distrair, de nos fazer esquecer mesmo que por um breve momento este mundo de tristezas e sofrimentos. É a contemplação desinteressada.
Schopenhauer ensina a fruir da árvore do conhecimento mais que da árvore da vida. Aquele é pleno de paz, calma, fruição desinteressada; este é cheio de angústias, durezas, reveses, contrariedades. Um acessamos pelas excitações do corpo o outro através de sua silenciação.
Não se trata aqui de uma libertação duradoura, mas meramente de uma breve hora de recreio”
– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, cap. 29
Momentânea emancipação? Ora, já nos parece o bastante, face a tudo que vimos anteriormente. Não há nada de errado, diz Schopenhauer, em querer desligar-se do mundo por uns breves instantes, para recobrar as energias, para contemplá-lo sem se deixar afetar por todas as suas crueldades, para divertir-se (no sentido mais profundo do termo: divergir). Aqui queremos apenas um pouco de paz. Quando sujeito se perde no objeto, para além de qualquer objetivo, ele se torna uno. Na estética temos a possibilidade de apreender as ideias, sem sua ligação com a Vontade.
A Hierarquia das ideias segue a mesma da Vontade em sua manifestação gradual:
- Arquitetura: primeira manifestação das ideias, simboliza o grau mais baixo de arte, a luta entre as forças primordiais: gravidade, luz e rigidez. A tarefa da arquitetura é fazer entrar em cena esta luta, pois ela, de certa maneira, é o que constitui a própria vida. É a arte dos materiais que resistem à queda, que enfrentam a gravidade, se esforçam para continuarem existindo de determinada maneira, independente das forças naturais. A Arquitetura está diretamente ligada às forças que a rodeiam, torcem, constrangem sem ceder. À construção de formas rígidas, mas que aparentem movimento, à simultaneidade de força e leveza, à conquista da forma que resiste aos ímpetos da natureza.
- Jardinagem: depois das forças básicas da natureza, passamos à jardinagem, que diz respeito ao mundo vegetal. Jardinagem: Arquitetura viva. Schopenhauer elogia esta técnica como a arte de encontrar riqueza nas cores e formas naturais. Na capacidade de encontrar em cada região uma espécie nativa, uma maneira de florescer, de dar frutos, de encantar, enfeitar e entrelaçar-se. A jardinagem está acima da arquitetura porque nela interagem com seres vivos, em crescimento;
- Pintura e escultura de animais e seres humanos: A pintura e a escultura são maneiras de mostrar os graus de objetivação da ideia em suas mais elevadas manifestações: os animais e os seres humanos em suas formas mais puras. Contemplar um retrato pintado por um grande artista é contemplar a face do ser humano em geral, em sua forma harmoniosa, eterna. O artista toma da natureza uma ideia e a coloca num quadro. As esculturas retratam a elevação das ideias, pois não estão preocupadas com uma ou outra particularidade, mas com o gênero como um todo, o ideal, a perfeição. Trata-se da contemplação da bela forma, da boa proporção, das particularidades humanas representadas em uma imagem geral.
- Poesia e Literatura: está acima de todas as artes anteriores pois trata-se de uma manifestação dinâmica e não estática. Todas as representação inferiores precisavam paralisar o mundo para dar conta dele. A Poesia e a Literatura não precisam disso, portanto conseguem dar conta de um número muito maior e mais profundo de sentimentos e afetos. Acima da Poesia está apenas uma outra forma, a mais pura de todas.
- Música: poucos filósofos elogiaram tanto a música como Schopenhauer. Para o filósofo alemão, ela paira acima de todas as artes. Isto porque trata-se da manifestação máxima da Vontade no campo artístico. A música não lida com imagens, portanto não exprime ideias, ela é o próprio movimento da Vontade. Estamos próximo da coisa em si, a música é a cópia da Vontade mesma! Sua maior aproximação possível. Pois não está no campo dos fenômenos, não se deixa guiar por imagens. Pela música podemos fazer um apanhado das outras artes, dos graus de manifestação da Vontade: os tons mais graves representam a vida inorgânica, são as notas fundamentais, é sobre elas que se sustentam os acordes e melodias; depois passamos ao reinos vegetal e animal, acordes médios e, maiores e menores, harmônicos ou desarmônicos, no topo, está a melodia que representa o homem consciente de si, vagando sobre a pauta musical sem saber porquê… sobrevoando os acordes em busca da nota fundamental.
A música vive de consonâncias e dissonâncias, assim como a vida que vive de discórdia e reconciliação! A música se faz no mesmo movimento que a vida, satisfação e insatisfação, acordes dominantes e fundamentais. Na música, encontramos o espelho perfeito do mundo e da vida humana, em sua afirmação contínua até retornar ao acorde fundamental, pacificar-se onde primeiramente partiu: o nada. A música, como diziam os Pitagóricos, é a essência do mundo. Um bom músico vale mais que mil filósofos, diz Schopenhauer, uma Sinfonia, mais que mil tratados de filosofia.
A fruição do belo que a arte proporciona faz esquecer a penúria da vida. Schopenhauer volta à superfície procurando alento, consolo, e o encontra na estética. Se a existência é sofrimento contínuo, a arte nos salva mesmo que momentaneamente. Não se trata de uma saída definitiva, mas é o primeiro ensaio. É apenas um consolo ocasional, mas já é alguma coisa. O ensinamento e a constatação são de grande valia: é possível libertar-se da Vontade e tornar-se puro sujeito do conhecimento. Schopenhauer aprofundará essa cisão ao longo de sua obra.
Muito bom o texto sobre pensamento de Schopenhauer e a arte, esclarecedor e hermenêutico.