Vimos como a afirmação da Vontade é fonte certa de sofrimentos. Vimos também que a negação do querer é a melhor maneira de evitar seus tormentos. Por que então queremos tanto a vida? Ninguém é capaz de dar uma explicação satisfatória! Ninguém pode dar uma boa razão para viver porque o apego à vida é irracional e cego! Não está no campo da lógica e dos argumentos, pertence a algo maior que se afirma em nós (e para além de nós). Deveríamos então nos matar? Para a Vontade de Vida, é óbvio, a vida é um bem supremo (mesmo ela mesma não tendo explicações para isso), mas para nós não está tão claro assim.
A Vontade de Vida é a essência mais íntima do homem, seu grilhão, sua corrente que o ata a seus antepassados e o liga a seus herdeiros. Ela é destituída de conhecimento, é cega, somente deseja a continuação e a propagação de si. O conhecimento intelectual cresce dentro deste jogo de propagação das espécies, mas contempla o espetáculo decrépito do mundo e torna-se estranho a ela.
A vida vale a pena? Não. Qual a alternativa? Negar a Vontade de Vida em nós. Mas ao dizer isso, Schopenhauer não faz uma apologia ao suicídio. A Vontade não cessa com este ato de desespero, apenas se afirma vigorosamente. O suicida ainda quer a vida, mas está insatisfeito com as condições nas quais vive. Não se nega a Vontade de Vida afirmando uma morte violenta, mas apenas através da negação do querer e da afirmação do conhecimento. O suicídio nega tão somente o indivíduo, mas a Vontade permanece intacta.
Qual seria então o melhor caminho? O conhecimento deve voltar-se contra o querer e vencê-lo. O primeiro sinal de que estamos nos afastando da Vida é perder o medo da morte. O conhecimento pode se desatrelar da Vontade e vir a atuar a favor de uma boa morte, tornando o homem corajoso e sereno em seu encontro com o nada.
Precisamos continuar pelo ponto de vista empírico, pelo óbvio: não há nada que o ser humano tema mais do que a morte, este é o seu grande medo, maior do que qualquer outro. Por quê? Simples, porque somos pura Vontade de Vida, porque estamos presos em nossos desejos! Por isso a ausência de vida é nosso maior medo. Com a morte, perde-se o organismo, perde-se a consciência. Mas aqui, a diferença entre conhecimento e vontade começa a aparecer com maior clareza. A Vontade vive para além do conhecimento e do indivíduo.
Se um pêndulo, mediante o reencontro do seu ponto gravitacional, finalmente chega ao repouso, cessando assim aparentemente a vida individual do mesmo, então ninguém presumirá que a gravidade esteja agora aniquilada, mas cada um concebe que ela está ativa, tanto quanto antes, em inumeráveis fenômenos”
– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, §54
Ou seja, as forças primordiais que constituem a Vida como um todo permanecem para além dos fenômenos que vêm e vão. Para além das representações e da individualidade existe algo maior e mais profundo que se move. O pêndulo não põe fim à gravidade assim como a morte individual não põe fim à Vontade de Vida. O centro da argumentação de Schopenhauer se localiza aqui: O medo da Morte provém da própria Vontade, que crava os dentes em si mesma, se mastiga e se recria. O conhecimento vê tudo isso acontecer, serenamente, à distância. A Vontade, cega, não vê que ela ainda se mantém após o fim do fenômeno. A consciência é atingida pela morte, mas não deve temê-la, a Vontade a teme, mas permanece intacta.
O moinho já não existe; o vento continua, todavia”
– Van Gogh, Cartas a Théo
Schopenhauer nos convida a sair dos fenômenos e encarar a coisa em si. Os indivíduos são como gotas que caem, mas o arco-íris permanece imóvel. A natureza parece simplesmente não ligar para os seres individuais colocando milhares em risco diariamente, a aniquilação deles lhe é indiferente, e assim acontece. Quantas almas já não nasceram e pereceram? Mas a vida continua… nascemos e morremos em um piscar de olhos, mas a Vontade continua intacta.
Malgrado os milênios de morte e decomposição, nada ainda se perdeu, muito menos algo do ser íntimo, que se expõe como natureza”
– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, §54
Schopenhauer coloca a vida individual dentro do campo dos fenômenos, um eterno vir a ser e não ser heraclitiano; e a Vontade como um todo dentro do Ser em si, eterno ser imóvel, maciço, eleata. A coisa em si permanece imune à passagem do tempo e está fora dela. Sendo assim, o que há de eterno no homem não é o intelecto ou a consciência que o anima, mas a própria Vontade que se esconde atrás dos fenômenos, a própria força do motor imóvel que o anima.
Com a morte perde-se a consciência, mas não aquilo que a produziu e a manteve. A vida se extingue, mas não se extingue com ela o princípio da vida, que nela se manifestou. Por isso, um sentimento seguro diz a todo homem que há nele algo de absolutamente imperecível e indestrutível”
– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, §54
O conhecimento não deve temer a morte, mesmo sendo atingido por ela. A Vontade teme a morte, mas não é atingida por ela! Por isso o convite de Schopenhauer de salvação pelo conhecimento. Devemos entrar no mundo do conhecimento, apenas ele permite paz dentro do reino do vir a ser. Seria a morte o gênio inspirador da filosofia? Desde Sócrates, acredita-se que sim: a morte é nossa musa. Mas agora ela não passa de uma ilusão. Depois da morte, continuamos vivendo nos outros, como Vontade, nada se perde, tudo se transforma. O corpo prende a Vontade, a morte a libera da unilateralidade de uma individualidade. Como uma casca que se rompe. Morre resignado aquele que, a partir do conhecimento das coisas, renuncia e nega a Vontade de Vida.
Todos os homens desejam unicamente livrar-se da morte, não sabem livrar-se da vida”
– Tao té Ching
Esplêndido!!! Ótimas considerações.
Muito esclarecedor! Tornou muito mais simples conceitos tão abstratos. Vocês estão de parabéns!
Eu não existo na consciência dos outros. Sei que existia Consciência no Antigo Egito, mas apenas pelos livros e filmes – e nunca estive lá, portanto, também não estarei consciente em 2200. Até para Schopenhauer é difícil aceitar o Nada.