Há tão somente notas por toda parte. Uma buzina de automóvel que faz uma velha gritar em lá menor. As pausas que tornam dramática uma declaração de amor do outro lado da esquina. A chaleira que comunica em glissando o seu calor. Uma criança que aprende suas primeiras notas no andar de cima. O zunido de uma vespa cortejando orquídeas.
A distinção que fazemos entre a música e os sons ordinários é apenas questão de organização. Por mais que assuma seus ruídos, a música se faz tanto pelo que permite passar quanto pelo que interdita. A arte é um sistema de códigos, e principalmente o que falha neles. A música é uma linha de desejo que maquina notas em um caminho intensivo, do qual se extrai a conveniência ou inconveniência dos sons.
Nota ante nota constroem-se as melodias, segundo um processo de pura conexão. As melodias são linhas que passeiam por entre os campos, traçando regiões de alto relevo que escalam em grande tensão, assim como planícies em que repousam antes de voltar a caminhar. Tudo que uma melodia pode é variar, diferir, passear, oscilar, costurar… mas ela não faz isso senão sobre uma superfície que nunca para de se movimentar ao mesmo tempo que ela.
O único problema é sempre o de uma repartição sobre uma escala de intensidades, que determina o lugar e o uso de cada coisa, de cada ser ou de cada cena: há isto e depois aquilo, e é com isso que temos de nos arranjar, agrade-nos ou não.”
– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo
Seria fácil de compreender se a coisa parasse aqui. Notas que se acoplam passeando sobre um campo harmônico. A questão é que isso é apenas o começo, não passa de uma descrição fria do que realmente acontece. A questão é que uma melodia não atravessa seu campo sem ser provocada por ele. Há sempre uma infinidade de notas disponíveis ali mesmo no corpo do instrumento, como um mar que ruge simultaneamente todas as frequências.
A organização de qualquer corpo – melódico ou não – se faz sobre um corpo sem órgãos. O que quer dizer simplesmente que há sempre mais do que aquilo que se efetua, há sempre mais caminhos do aquele que a melodia toma. Não se trata apenas de múltiplas possibilidades, mas de uma intensidade permanentemente inaudita, sempre indescobrível. Esse fundo intensivo de toda realidade é o que atrai e empurra todo movimento para além de si.
Ao escolher um caminho sempre se renuncia a todos os outros, não há como recusar esse destino. Ao traçar uma melodia sempre se recusa os diferentes trajetos, eis a loucura do compositor. Ao escrever uma frase sempre se preenche o papel que nunca deixa de estar em branco em sua memória, aí está o devaneio do escritor. Há, portanto, uma espécie de negociação entre as partes: é isso que aqui chamamos de arranjo.
Arranjar – ou agenciar – é incluir nas conexões binárias alguma flexibilidade, é articular as conexões em disjunções. Em vez de renunciar a todo movimento, o que sem dúvida tornaria besta qualquer melodia, o arranjo é uma das técnicas que abre espaço dentro da rígida estrutura da música. A melodia define-se em seu caminho, o arranjo a faz passear por outros lugares, respirar novos ares, desconhecer-se em si mesma.
A regra de ouro do arranjo é uma só: equilibrar diferença e repetição. A potência da melodia é diferir, mas ao fazê-lo, ela sempre corre o risco de tornar-se maluca demais: é o bolo desvairado de notas sem sentido, o gato no piano. Daí a necessidade de repetir seus motivos, refazer os seus saltos, imitar suas vozes. A melodia constrói seus temas repetindo suas pequenas partes, refazendo-se a cada poucos compassos.
O arranjo é o recurso que dá suporte à necessária repetição melódica ao mesmo tempo que insere novos elementos, permitindo a diferença brotar da repetição. Por baixo do grupo de notas escolhidas, o arranjo é o que abre as portas para a diferença agenciar novos territórios que a melodia então atravessa variando-se. Uma melodia não é a mesma se passa sempre por outros lugares, o ritornelo é a grande ocasião para a sua diferenciação.
Em cada repetição, um novo acontecimento, é esse o gesto do arranjador. Ele garante que a linha permaneça interessante mesmo nos seus elementos mais repetitivos. Seu desafio é fazer de todo retorno uma abertura para a diferença. Ao redor da repetição melódica o arranjador pede pela variação no timbre, na harmonia, na altura, na dinâmica, na orquestração, no andamento… tudo para dar novo fôlego à inscrição melódica.
Nesse sentido, talvez precisemos pensar que a tarefa do arranjador não deixa de ser … desarranjar. Parece paradoxal, mas não é. Basta ter em vista que a potência é sempre de diferenciação para entender que a organização pode servir para desarranjar algo, para modificar algo, para aproximar a máquina do corpo intensivo do qual surgiu. O desarranjo da base em relação à melodia é parte do que faz a música interessante. É nesse sentido que se diz: isso funciona!
As máquinas desejantes não param de se desarranjar enquanto funcionam, e só funcionam desarranjadas”
– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo
Para além de qualquer paradoxo, o arranjo é a técnica que faz desarranjar, mas com cuidado, com prudência, respeitando os limites de cada melodia, sem descaracterizá-las. É uma metamorfose, um giro, uma leve torção. O arranjo é o que permite que a melodia seja intensa enquanto núcleo de repetição sobre o campo da diferença. É como o canto de uma pequena ave pousada em seus ovos. Notas que se repetem, mas sempre apoiadas na intensidade pura de algo que ainda não existe.