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Tão antiga quanto a roda, a escrita é uma invenção coletiva de função eminentemente social. A palavra é uma superfície simbólica na qual se espelha o mundo: nas mensagens de texto, nas bulas de remédio, nas listas de mercado, em portas de banheiro e também em bancos de ônibus, os pensamentos se reinventam em frases que adquirem sentido a partir de sua posição em um complexo sistema que mistura o meio, o conteúdo e a autoria. Um parágrafo é um fantástico plexo de ideias que sobem à superfície do pensamento daquele que lê, entrecruzando o autor e o leitor.   

A multiplicidade de relações heterogêneas de que a escrita depende para fazer sentido exerce uma força disruptiva, que tem nos arremessado todos – escritores e leitores das mais variadas épocas – em direção a um campo aberto no qual a relação com o conteúdo se enriquece à medida que extravasa a sua função social. Quando renuncia à sua função imediatamente social e comunicativa, a palavra ganha uma nova vida: agendas pela metade, diários esquecidos, planejamentos confusos, rascunhos de poesia, notas de terapia, pensamentos envergonhados e grandes ideias descartadas. Algo curioso se passa com estes papéis de gaveta: em alguns casos, geralmente acompanhados de severa obsessão, eles se transformam em livros.

Um livro é um objeto bastante estranho. Se não parece, é porque nos acostumamos com ele. Acreditamos que o livro é, por excelência, a forma final da escrita. No entanto, basta olhar com atenção para perceber que o livro é uma peça que atrapalha toda a vestuária da linguagem. Mesmo os mais funcionais – os manuais, os normativos, os didáticos – são bastante esquisitos, porque, em verdade, praticamente não são lidos. E a prateleira vai ficando mais bizarra conforme avançamos: Livros que contam histórias – romances, crônicas, contos, novelas – e, ao fazê-lo arrastam os leitores para viver um pouco em seus universos; livros que são resultado de pesquisas – científicas, acadêmicas, particulares – muito bem lidos por um número bem pequeno de pessoas; livros de poesia, nos quais as palavras se esquivam dos seus significados, dançando no papel; livros que prometem grandes respostas – autoajuda, espiritualidade, desenvolvimento pessoal – e entregam nada mais do que senso comum; livros que fazem grandes perguntas – livros de filosofia – entusiasmados com respostas provisórias e suas novas perguntas.

Ainda mais estranha do que o próprio livro é a ideia de autoria. Por que alguém escreve um livro em nome próprio? É fácil responder o porquê de uma mensagem de texto enviada ao outro e também de uma nota pessoal voltada para si, mas um livro vai muito além destes destinos previstos. Escrever um livro é estabelecer uma conversa com um leitor que não se sabe quem é. Ali, dentro do texto, arruma-se a casa para um encontro entre duas grandezas distintas: um “eu” (ou um “nós”) e um outro, que não tem nome, idade, nacionalidade, tempo, corpo, identidade, gênero, sexualidade, enfim, nada. Assim sendo, escrever é transpor o pensamento para a superfície nua da linguagem. O autor imprime letras no vazio. Ali, na página, de forma um pouco envergonhada, as ideias estão inertes. Que seriam delas sem este outro que as revive, mas não pode fazer isso sem inserir nelas os seus próprios pensamentos, a partir de sua própria localidade no infinito nexo de relações com o mundo? 

A linguagem é a prova de que ninguém pensa sozinho. Ninguém inventou a língua, ela se fez na própria passagem. Quando muito, inventamos uma palavra, mas a vida de qualquer vocábulo depende de uma voz coletiva que lhe emita aqui e acolá, vezes o suficiente para lhe dar corpo. É por isso que, ao escrever, tomamos a liberdade de brincar com algo público, de valor inestimável e capacidade revolucionária. A palavra escrita passeia pela língua das outros. É uma grande responsabilidade. O autor, porém, não é nada se não é lido. Assim, tornar-se autor é aceitar o desafio de dar contorno à multiplicidade que se enuncia no texto, que não pode retornar ao mundo sem modular enquanto passa pela cabeça do leitor, ele também em sua pluralidade. Tudo que se espera de um bom livro é que ele seja capaz de direcionar essa multiplicidade para uma perspectiva comum, através da qual se possa construir um diálogo. 

Nestes termos, o livro de filosofia é um desvio particular operado pelo autor em uma história povoada de esforços coletivos pouco assimiláveis, mas perpetuamente em diálogo. A filosofia, ela mesma, se apresenta como essa perspectiva nobre do pensamento, que  ao longo de milhares de anos tem atraído em sua direção os mais diversos olhares. Dada a imensa variedade de pensamentos que povoam as páginas, é tão difícil quanto irresistível definir o livro de filosofia. Tudo que este autor pode fazer é anotar em palavras arriscadas o que neste momento passa em sua cabeça: o livro de filosofia é uma ousadia do autor em registrar o seu diálogo com o pensamento produzido em todas as épocas sobre questões recorrentes.

Owen Gent

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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