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Existe um exercício meditativo na filosofia estoica chamado: A Festa da Existência. Trata-se de um exercício de pensamento:

Imagine que você foi convidado para uma festa, você se arruma, compra um presente e procura chegar no horário marcado. Quando você chega, procura pelo anfitrião e entrega o presente ou a comida que você comprou. Durante a festa, você se esforça para ser educado com os outros convidados, expressar sua opinião sem ofendê-los e se interessar pelo que eles dizem. Quando alguém é inconveniente e atrapalha a comemoração, ameaçando até mesmo estragá-la, você se torna ríspido, pois se sente responsável pelo bom andamento do evento. Ninguém precisa ser expulso, basta cooperar para a que a celebração seja um bom momento para todos (sem exceções). Se algo falta, você se esforça para que seja logo providenciado, se alguém precisa de ajuda, você a oferece, você observa, sempre antecipando algo que pode acontecer, mas se a festa está indo bem você aproveita o máximo possível o momento. Então, chega a hora em que você começa a ficar cansado, muitos convidados já foram embora, alguns chegaram atrasados, outros foram sem nem mesmo se despedir, o que muito entristece. Enquanto isso, convidados novos continuam chegando, mas você já não os conhece tão bem, não tem muito assunto, é estranho. Você pode continuar, mas pouco a pouco aumenta a sensação de que o momento de comemorar passou e é preciso descansar, está chegando a hora de ir embora. Quando o pressentimento se transforma em certeza, você se levanta, se aproxima do anfitrião e, se a festa foi boa, diz: “Obrigado pelo convite, foi um prazer e até a próxima, se possível”, e volta pra casa.

Isso é muito importante: quais são as últimas palavras? “Muito obrigado, foi um prazer, que bom que eu pude estar aqui, que alegria poder participar deste momento, vamos fazer isso de novo”. Resumindo: “Sinto-me grato por estar aqui”.

Gratidão é mais uma das palavras que roubaram da gente. É gratidão por tudo, gratidão pra todo lado, por ter um emprego merda, mas poder trabalhar; por ter pais abusadores, mas afinal tem gente que nem pai e mãe tem; por estar em um lixo de relação, mas ao menos ter alguém que diz nos amar. A lista é infinita, e parece que os cheios de gratidão sempre encontram um jeito de nos obrigar a agradecer mesmo aos maiores absurdos.

Queremos falar deste sentimento, mas de um jeito diferente, que talvez possamos definir como uma gratidão ontológica que não se refere a nada em particular. Seguimos por outro caminho. Começamos pela efemeridade das coisas: afinal, são bilhões e bilhões de anos de concatenações de eventos. São estrelas que precisaram explodir em supernovas, criando os elementos básicos da vida. São sistemas solares que precisaram nascer com planetas girando a distâncias e com tamanhos muito específicos. É Júpiter que desviou cometas cheios de água na direção da Terra. É o Sol que brilhou com constância e paciência de milhões de anos para que a vida pudesse existir. São os infinitos microrganismos que mudaram lentamente a atmosfera da Terra. São três ou quatro extinções em massas que acabaram, por exemplo, com os dinossauros (não seria muito agradável, para não dizer impossível, compartilhar nossa festa com eles). São todos os nossos ancestrais, simplesmente todos sem exceção, que de uma maneira ou de outra conseguiram sobreviver, se alimentar e reproduzir, até que nossos avós dessem origem aos nossos pais e, por fim, a nós mesmos.

É estranho pensar que, por uma margem mínima de vantagem sobre outro espermatozoide ou outro óvulo, quase não fomos convidados para a Festa. Mas estamos aqui, em relação com tudo, e nós agradecemos não o lado bom ou ruim disso, não um evento específico, mas simplesmente o fato de que isso é possível neste momento. Poderia não ser, poderíamos não ter nascido, mas tivemos a oportunidade. Recebemos o convite, entramos em campo, fomos selecionados para interpretar um papel no palco da existência. O universo poderia não existir, mas existe, nós poderíamos não ter nascido, e muitos infelizmente desejariam isso. Mas nós nascemos, e agora que estamos aqui a pergunta é: o que fazer? “Devemos continuar vivendo ou não?”, pergunta Albert Camus. Podemos nos matar, mas deveríamos? “Não”, responde ele. Então, qual pode ser o outro caminho agora que estamos inscritos na existência?

Nascer é abrir-se para a vida, colocando-se no campo do real, é chegar na festa. Às vezes ela é uma porcaria, tem o clima péssimo, acompanhado de música ruim e  convidados chatos. Podemos ir embora, nada nos impede, mas podemos ficar, pensando que existe mais coisa para conhecer fora do útero. Se fumamos, talvez o melhor lugar da festa seja o fumódromo; se gostamos de dançar, talvez a pista seja um ótimo lugar para estar; se gostamos de beber, o melhor lugar com certeza será do lado do barman. Nos encontramos e nos relacionamos com os convidados, aliás, na verdade, são os convidados que realmente importam e constituem o clima da festa. Onde queremos estar? Com quem queremos estar? O que queremos fazer?

Talvez os drinks preparados sejam uma porcaria, precisamos fazer algo! Talvez a música não seja dançante e todos estão afim de dançar, precisamos fazer algo! Ser convidado para a festa é saber que a partir daquele momento nós também somos responsáveis pelo seu bom andamento. Se faltar cerveja, o que vamos fazer? Se alguém vomitar no chão, qual o melhor curso de ação? Se as coisas não estão boas, é nosso o momento de agir e não o daqueles que ainda não chegaram ou já foram embora. Viver é participar, é estar, é ter a chance de agir. A festa é este breve momento onde a ação é possível, mas sabemos, infelizmente, que uma hora é preciso partir.

Temos que aceitar que todo “sempre” é ilusório, mas, ainda que a vida seja um sopro, existem dois pensamentos que nos ajudam a encarar o fim da festa. Primeiro, saber que nosso corpo se dissolverá, mas que ele nunca foi realmente nosso: os átomos que o constituíam pertenciam a outras coisas antes de serem nossos e eles, com nosso fim, voltarão a se misturar e gerar coisas novas. Como um copo que foi lavado e reutilizado na festa por outro convidado, como um bolo que foi deixado para outros saborearem depois da nossa partida. Segundo, nossa mente também pode deixar de existir, mas os pensamentos que a habitavam continuarão a fazer parte deste mundo em constante devir. Pode ser um pensamento que ficou rodando por um tempo (ou muito tempo), pode ser uma playlist de músicas que volta a tocar depois de muitos convidados já terem ido embora, pode ser uma piada que contamos e alguém conta novamente fazendo todo mundo rir.

Em suma, seremos reciclados, reutilizados, transformados, nosso corpo e mente ainda farão parte da festa se modificando. Se pensarmos bem, nada era nosso desde o início, somos apenas convidados. Existe uma dignidade em aceitar nosso caráter efêmero e finito. Por mais que uma parte de nós anseie pela eternidade, somos apenas estrelas cadentes, que afundam brilhando em direção a algo maior. Se tudo não era nosso desde o primeiro momento, se fomos convidados, então deveríamos saber que estávamos lá apenas de passagem, e por esse motivo mesmo, nos dedicar a aproveitar a festa da melhor maneira. Não se filosofa bem sem agradecer a própria chance de poder filosofar: pensar, a partir deste lugar, neste momento, entre tão boas companhias.

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Lua f
Lua f
6 meses atrás

Muito bom! Realista encantado, como diz um amigo meu. A perspectiva do fim não desespera se tem a oportunidade de estar presente.✨