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Texto escrito em parceria com Gabriela Jacques

A psicologia clínica, antes de uma prática, é uma reflexão ética: primeiro ela se pergunta no que consiste uma boa vida. Diante dessa indagação, um psicólogo certamente responderá, como de costume: depende. É um bom começo, porque a boa clínica não é um exercício autoritário de imposição de caminhos pré-determinados. Ela é uma investigação, com o paciente, sobre sua história, seu funcionamento, e sobre qual é a vida que, para aquele sujeito particular, vale a pena ser vivida. 

Pode parecer genérico, mas afirmar que a definição de boa vida “depende” de cada sujeito é partir de um respeito radical à alteridade – objetivos clínicos são específicos a cada pessoa. Mas, ainda que idiossincráticos, esses objetivos precisam de pressupostos éticos para serem desenhados – e esses pressupostos são mais filosóficos que científicos. Levando isso em consideração, elegemos Espinosa e Skinner para um diálogo entre filosofia e psicologia. 

Ambos autores partem de visões de mundo radicalmente monistas, ou seja, compreendem o corpo e a alma como uma só coisa e este conjunto como parte relacional do mundo. Esta é a grande questão: um corpo real, em relação com um mundo igualmente real. Nesta relação mútua, o mundo se altera e o corpo se altera, ele age e sofre as consequências dessas ações. Skinner chama as consequências de reforçadoras (aumento da frequência do comportamento) ou punitivas (diminuição da frequência do comportamento), já Espinosa chamou estas transições de Alegria (aumento da potência) e tristeza (diminuição da potência). Em suma, os diferentes contextos nos quais estamos inseridos fornecem ou não a ocasião para determinadas ações que, por sua vez, produzem efeitos.

Em outras palavras, dadas condições diferentes, um corpo poderá se transformar de maneiras cada vez mais distintas. Sendo assim, o que norteia essas mudanças na clínica? E como Espinosa pode nos ajudar? Ora, diz o filósofo, existem relações que ensinam o que há de comum entre nós e o mundo e assim aumentam nossa capacidade de agir, desta maneira, toda alegria acontece por uma constituição própria do nosso corpo que abre um caminho na relação com o mundo. De certo modo, o reforço positivo do comportamento operante também faz isso, porque com ele o organismo aprende que ali há um comportamento seguido de determinada consequência, e a partir disso seu repertório expande.

Uma clínica alegre, no sentido espinosista, seria então conhecer melhor para poder agir melhor. Quanto mais aprendemos a regular nossos afetos, mais aumentamos nossa potência‭ –  atenção: regular, não separar-se deles! Percebe-se, logo, que a alegria espinosista não é simples prazer imediato e hedonista. Alguém diante das palavras “psicologia positiva”, talvez imagine um “coach gratiluz” propondo “mindfulness de afastamento de ideias ruins” – mas nada poderia ser mais distante de Espinosa e Skinner, ambos entusiastas de um agir no mundo armado de conhecimento – inclusive, conhecimento sobre nossos afetos tristes.

Mas o problema persiste: se o ser humano é um organismo de enorme complexidade,‭ ‬com uma variedade quase infinita de respostas possíveis, como definir qual a “melhor alegria”? Mais uma vez aparece a potência do conhecimento: a partir da experimentação e observação de padrões na nossa história com o ambiente, conseguimos mapear algo como uma ecologia de afetos. Um bom equilíbrio na mistura de alegrias e tristezas. Afinal, alegria não é simplesmente evitação da dor, se fosse assim, qualquer dor seria desaconselhável. Como a alegria é aquilo que aumenta as possibilidades de afetar e ser afetado, a figura é outra. Ela nos movimenta, e estes movimentos estão dispostos a aceitar até mesmo uma certa dose de desconforto no processo  – ainda mais se conhecem a potência guardada em tolerar certas dores.

Ora, se a alegria é saber como fazer, quando fazer e quais as consequências que produzimos, então, paradoxalmente, a liberdade se torna a satisfação em uma única escolha, sentir em seu íntimo qual é o melhor caminho e ter a oportunidade de segui-lo. A alegria dá provas de si mesma depois que experimentou vários caminhos e descobriu qual é o seu. Como um funil, o ser humano cultiva a si mesmo não para ter várias opções ao seu dispor, mas para saber qual é o seu caminho. 

Seguindo este raciocínio, uma grande “variedade de opções” não é suficiente para definir autonomia e conquistar a alegria. Uma pessoa com múltiplas opções de trabalho precário, por exemplo, não é mais livre que alguém com poucas opções de trabalho digno. Liberdade é conhecer-se, é saber o que fazer e ter condições para conseguir fazê-lo. Liberdade é a afirmação do plenamente necessário em nós, e por nós. Nesse sentido, repetimos, liberdade é feita mais de certezas do que de opções. 

E certezas nascem de processos clínicos com uma escuta apurada, cuidadosa. O trabalho clínico pode gerar a certeza de certos valores que nos guiam e nos sustentam neste caminho. A Ética Clínica seria então não apenas a capacidade de aumentar as possibilidades do sujeito de afetar e ser afetado, aumentando assim a sua ação no mundo, mas também a certeza do que fazer com isso. Nos afastamos de uma clínica de falsos excessos e nos aproximamos de uma clínica ética, que delimita valores – ou seja, constrói a compreensão do que é significativo para aquela pessoa. Estranhamente, essa definição completa permite uma clínica pautada na autonomia e liberdade mesmo sem acreditar na ideia de livre arbítrio.

O trabalho clínico então é menos sobre orientar caminhos específicos e mais sobre criar ferramentas para que o afetar e ser afetado seja mais efetivo, além de concretizar algumas certezas sobre estes caminhos aparentemente tão múltiplos, mas tão concretos na prática. Uma clínica espinosista só poderia ser uma clínica da alegria – sempre associada à autonomia e à liberdade.

Ilustração – Gabriela Jacques

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Marcelo A Santos
Marcelo A Santos
10 meses atrás

Sensacional! É nisso que acredito e nessa linha é o meu trabalho clínico.