Parece que a mente humana funciona por seleção e exclusão. Faz sentido pensar assim na vida prática, porque depois de virar à esquerda não podemos virar à direita; ou seja, ao escolher o caminho A, o caminho B fica automaticamente excluído. Fazemos escolhas diariamente, isso é natural e necessário, o problema começa quando, seguindo este raciocínio, precisamos escolher sobre o que pensar e o que não pensar.
Foi Deleuze quem transformou a afirmação espinosista em uma pergunta: afinal o que pode o corpo? Esta questão ficou famosa. Muitos tagarelam sobre a mente, dizia Espinosa, e parece que se esquecem do corpo. Deleuze levou ao limite esta afirmação e se esforçou para excluir do corpo todas as fórmulas tradicionais da filosofia. Desde então, muito se tagarelou sobre o corpo também! E a pergunta contrária de repente ficou proibida, ninguém ousava questionar: afinal, o que pode a alma? Esta curiosidade soava barroca, ou melhor, cristã. Certamente o pensador holandês, tão equilibrado em suas deliberações, jamais nos proibiria de fazer esta outra pergunta. Afinal, o problema não é sobre o que se pode ou não se pode falar. O que nos interessa é se podemos ou não podemos pensar bem uma questão.
Todos conhecem a parábola de Deus formando o homem do pó da terra e lhe soprando nas narinas o fôlego da vida. Esta é provavelmente uma das primeiras afirmações psicológicas da história do pensamento ocidental: o ser humano ganhando vida através da intervenção divina. este mito exacerba nossa concepção da separação entre alma e corpo. E pior, se a alma é presente divino e transcendente, então o corpo só pode nos parecer decaído, pecador. Estas interpretações ganharam força na tradição religiosa e invadiram vários aspectos da cultura e da filosofia, mas é preciso cuidado, estas histórias antigas não podem ser interpretadas com as ideias que temos hoje.
Imagina-se que o gênesis tenha sido escrito no século V a.C. Nesta época, andava pelas ruas da Mileto, na grécia, um antigo pensador pré-socrático chamado Anaxímenes, discípulo de Tales. Ele dizia algo muito parecido: uma força primordial (arché) carrega todas as coisas e por ela nos sentimos levantados, transportados, arrastados, conduzidos. Algo nos atravessa, como o vento que levanta uma folha e a faz dançar. A existência, como um todo, é uma lenta respiração que tudo invade; um eterno inspirar e expirar… um contrair-se e dispersar-se. Ou seja, a divindade aqui não aparece como uma entidade superior e punitiva, ela é o próprio soprar da existência, contínuo e infindável.
O ar é alma do mundo, é o que dá vida e movimento a ele. O ar atravessa o mundo da mesma maneira que um ser vivo a respirar. Trata-se de um pensamento hilozoísta, palavra que tem origem no grega: hyle que significa matéria e zoe que significa vida. Mas a vida aqui não é pensada no sentido estritamente biológico que estamos acostumados, porque os deuses e mesmo a natureza também são esta força. Sendo assim, trata-se muito mais de um impulso vivo que atravessa a matéria até onde consegue. Poderíamos chamar, como Bergson o fez, de Elã Vital. Seja qual for a palavra, o cosmos se mantém por um sopro de ar que o atravessa.
Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido” – Alberto Caeiro
Pois bem, é deste ar que estamos falando. A natureza é este sopro que se espalha em todas as direções, ela é um impulso de propagação que ao mesmo tempo mantém as várias partes deste impulso unidas. Pensemos por exemplo no nosso corpo, esta coleção de átomos, moléculas, proteínas, organelas, células, tecidos, órgãos. Como isso tudo funciona? Muitos biólogos diriam que o corpo funciona como um relógio, e quando uma peça quebra, ele se desregula e pode até parar de funcionar se um médico qualificado não atuar. Claro, este raciocínio é válido quando quebramos o braço ou algo parecido, mas nós sentimos bem fundo no peito que a vida é mais do que uma relação ajustada de peças.
Existe alguma coisa que atravessa todo esse conjunto, uma energia, alguns diriam, como o choque que o Dr. Frankestein descarregou em sua criatura feita de várias partes diferentes de corpos humanos. O que é essa força que dá vida? O que faz um corpo vivo ser diferente de um corpo morto? Neste caso, diríamos que o conjunto é maior que a soma das partes. Para onde segue esta força e o que quer de nós? Estas são as perguntas que nos fazem pensar sobre a alma.
No limite, poderíamos dizer: não amamos corpos, amamos almas, o que nos interessa é a força que atravessa um corpo e dá vida a ele. Tanto faz o nome, pode ser psiquê, mente, alma, espírito. Nos perguntamos o que é isso que faz um cadáver ser diferente de um ser vivo. Ao longo do desenvolvimento das ciências médicas, nos tornamos muito bons em falar do corpo, mas aos poucos parece que perdemos a relação com a vida em seu sentido mais filosófico.
Qual o valor da alma? Uma resposta inicial é possível: um boneco empoeirado encostado no canto do sotão não fala e não nos faz rir. Basta o Ventríloco segurá-lo em seu colo que ele começa a se mover e brincar com todos os presentes. A vida é uma força de interação, de criação; no seu ato de afirmar-se ela cria caminhos novos. O que pode a alma? Diríamos que ela é a emanação mais potente dos corpos.
Uma síntese pode ser feita, pensando numa trégua com os deleuzianos mais aguerridos. Reformulemos a pergunta: o que pode o corpo vivo? Ora, pode expressar a essência de um mundo afirmativo e criador. A alma é o corpo levado aos seus limites, e queremos saber até onde pode ir. Como o vento levanta a folha, nós também somos um sopro, apenas um suspiro, uma brisa efêmera, mas tudo isso importa, e muito.
Existem tragédias na vida em que apenas o Materialismo Hedonista não nos fornece abrigo…Por isso tenho carinho pela visão de Deus de Espinoza e os hindus tem algo parecido na ideia de Brahman …Se Deus é a substância seguimos o caminho do meio em relação as formas que dela surgem Nem apego e nem rejeição ter a visão correta..