Skip to main content
CarrinhoClose Cart

“É verdadeiramente do filósofo este sentimento, o espanto; pois não há outra origem da filosofia a não ser esta”

– Platão, Teeteto

O espanto é o que sentimos logo no começo, como o anúncio triunfal de um novo caminho – quem sabe onde vai dar? Conhece num dia, troca algumas palavras, uma gentileza outra hora, uma coincidência boba, um café naquela mesa, uma mensagem ontem, uma presença hoje. Encontramo-nos de repente imersos no outro. Tão imprevisível quanto pode ser, de repente, a ficha cai: amamos – e como nos espantamos! Não estava ali antes, não havia isso ontem, como foi que chegamos aqui? O fato é que agora as coisas mudaram e o espanto é o índice dessa mudança.

Às vezes, amar é experimentar uma vertigem: de repente, tudo começa a girar. Andamos pelas mesmas ruas, mas elas não são mais as mesmas. Falamos com as mesmas pessoas, mas elas não são mais as mesmas. As coisas estão nos mesmos lugares, mas os lugares não são mais os mesmos. Nós fomos modificados pelo acontecimento-amor e experimentamos uma radical mudança de perspectiva. Nosso olhar foi deslocado por um encontro, como por um golpe de força, e agora precisamos aprender tudo de novo. Ora, mas talvez seja exatamente isso que nós queiramos do amor.

Nem sempre nos apaixonamos assim tão de repente, mas mesmo assim nos surpreendemos, porque não é possível prever muita coisa no campo das relações. É impossível dizer o quanto o encontro com alguém pode modificar nossas vidas. Rápida ou lentamente, a questão é que não percorremos o caminho que transforma uma pessoa qualquer em uma pessoa fundamental sem nos espantar. Outro dia não era ninguém, hoje é causa de uma alegria indispensável. O que aconteceu? Parece evidente que o amor não pede passagem, ele nos toma em seu movimento, e nós ficamos a admirar, tão empolgados quanto angustiados.

A coexistência de múltiplas sensações promove uma nova sensibilidade, pela qual recuperamos a disposição em olhar para as coisas novamente, como se fosse a primeira vez. Isso é muito valioso, porque parece que, conforme o tempo passa, somos carregados pela repetição, o hábito nos formata e vamos perdendo, dia a dia, a vivacidade*. Nos dedicamos a lembrar, organizar tudo na cabeça, mas acabamos perdendo do presente a maior parte. Como voltar a ver as coisas em sua imensidão? De que maneira podemos recuperar o espanto que tínhamos ao ver as coisas pela primeira vez? Como promover um amanhecer dos sentidos? Podemos apostar na capacidade que o amor tem de nos despertar*.

Quando nos apaixonamos, somos tomados pela vontade de viver tudo mais uma vez. Queremos contar novamente os antigos detalhes, revisitar as memórias, passear pelos velhos lugares – pois tudo isso se tornou novo de novo. O amor é um passeio do qual retornamos para casa diferentes, o lugar pode até ser o mesmo, mas nós nos tornamos outros*. Saímos para dar uma volta e ao retornar queremos compartilhar as novidades, atualizar todo mundo sobre o que estamos sentindo, contar do que vimos no caminho. Se construímos relações de alegria-mútua, então provavelmente somos bem recebidos por quem quer que compartilhe a vida com a gente: dividir as histórias de amor com as todas as pessoas que amamos é uma segunda maneira de vivê-las, pela qual compartilhamos as alegrias com quem sabe participar delas. Poder compartilhar as alegrias com todos os envolvidos é um dos melhores efeitos da integridade, isto é, pela consideração que uns tem pelos outros na relação. Aliás, às vezes não somos nós os apaixonados da vez, mas se formos uma parte considerada na relação, poderemos tomar parte no entusiasmo que a paixão traz consigo, mesmo que seja nos outros.

Enquanto princípio para a anarquia relacional, o espanto é o que nos mantém abertos para a vida. Tudo é grande demais para acreditarmos cegamente em estabilidade; as coisas são demasiado múltiplas para que nos conformarmos confortavelmente com a previsibilidade. É claro que nem toda surpresa é boa, mas toda surpresa nos desperta para o incrível fato de estarmos vivos. Somos seres que se apoiam na repetição, treinados para identificá-la e levá-la em consideração para sobreviver, mas estamos envoltos em um universo de infinitas possibilidades, que é o que realmente nos permite buscar uma vida que signifique qualquer coisa mais do que a mera sobrevivência. Queremos estar de olhos abertos para encontrar o inédito de cada vez, pois ele está lá, ainda que escondido sob o manto do previamente conhecido. Há sempre um detalhe que passou despercebido, ainda mais quando se vive com tanta pressa*. O amor interrompe o movimento mecânico, nos torna improdutivos – atentos, porém sonhadores – e impõe uma outra temporalidade: o tempo parado das ideias pressupostas e o tempo corrido do cotidiano não dão conta da experiência amorosa, ela nos faz perceber um tempo subjetivo, adensado pela consciência de existir no mundo*.

Mesmo com todas as dificuldades que envolvem a paixão, tão capturada no imaginário romântico, precisamos fazer o seu elogio, pelo simples fato de que ela nos espanta de uma maneira que não acontece com tanta frequência. Por que o espanto causado pela paixão é valioso? Ora, porque não queremos nos relacionar com o mundo descobrindo sempre o mesmo a dobrar cada esquina, por trás de cada rosto. A vida de sempre, cotidiana, repetida, mecânica, comprida, é cansativa, o trabalho pesa, as responsabilidades chamam – mas poucos vão discordar da ideia de que o amor que surge promove uma estranha renovação, nos tornando um pouco mais inconformados com o escorrer dos dias. A paixão nos chacoalha em meio ao resmungo cotidiano: não é fácil existir nesse mundo e por isso temos o direito de reclamar até das menores coisas, mas é muito bom voltar a sentir a grandeza nelas. A alegria que sentimos com a mera existência dos outros nos obriga a olhar para a bela ocasião de estarmos vivos juntos.

O espanto é nossa medida para a diferença, para aquilo que é sempre outro, sempre múltiplo. Por valorizar a ocasião única no qual os encontros acontecem, a anarquia relacional preza pelo que há de inédito em cada momento, por isso não compara, não hierarquiza, não prioriza, não julga o que há de singular em cada relação. Manter o espanto é combater o costume de classificar toda a novidade com critérios de sempre. Da vida, queremos o inclassificável, porque as vivências significativas são um pouco indizíveis. Quando rapidamente conduzida ao previamente conhecido, a relação perde a parte mais interessante do movimento que traz consigo, aquele que nos exige parar para pensar. Por medo, para diminuir a ansiedade, nós paralisamos as relações nos nomes, e com eles acabamos desperdiçando muito do que há de inominável. Em sua singularidade, cada pessoa é uma porta para a multiplicidade enquanto intensidade*, e é por isso que cada relação nos traz a possibilidade de uma vida mais viva.

Conforme estabelecemos relações duradouras em uma sociedade marcada pela norma monogâmica, o amor adquire uma tendência à familiaridade e começamos a sentir que esgotamos esse campo de possibilidades. É confortável e angustiante na mesma medida. Vivemos os dias com a sensação estranha de que resolvemos um problema, aliviados pelo fato do amor não ser mais uma das questões a lidar, mesmo que na relação a alegria seja deixada em segundo plano. A inércia afetiva é uma triste realidade das relações conjugais. É extremamente comum, porém, que ela seja interrompida em algum ponto: nos apaixonamos por outras pessoas. Independente de estar ou não abertos a esse acontecimento, somos convocados a olhar novamente para esse incômodo e pensar o fato de que, enquanto vivermos, estaremos em relação com os outros – a grande questão é que não podemos prever como. Para os que confiam no espanto, é um grande alívio pensar que não conhecemos ainda todas as pessoas pelas quais iremos nos apaixonar.

Texto da Série:

Anarquia Relacional

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

Mais textos de Rafael Lauro
Subscribe
Notify of
guest
2 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
Kétely Aqiii
3 anos atrás

Ler vocês nao me move apenas o intelecto, mas, o corpo inteiro. Eu mudo a todo instante.
O que é essa razão inadequada???
Escapa a tudo…. Melhor ficar sem definição. Belíssimo texto?????

Roberto
Roberto
3 anos atrás

Poesia domingueira dos espantos para viver! O texto esta excelente!Somos a dualidade de escolhas! Da vida de dores ou de alegrias? da vida comedida dos sentidos, da vida da permissão de todos os sentidos? Todos tem o direito de não sentir falta dos sentidos, todos imaginam liberdade, todos amam a solidão, todos querem sentir os corpos em sua plenitude! Onde reside a escravidão? Em que elo tua servidão responde, em que medida é tua suscetibilidad? Há em todos a covardia do medo quando não temos as respostas. Vejo nos espaços decoráveis da tua insatisfação a parilisia do mau humor! Na… Ler mais >