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Texto escrito à quatro mãos, junto com Gabriela Jacques

Várias tradições – da filosofia, psicologia e religião – aconselham a desvencilhar-se dos excessos como um caminho para viver melhor. Cada uma dessas tradições, à sua maneira, identifica o excesso como vício: o prazer vazio se opõe à disciplina de quem, com pouco, compromete-se ao fundamental.

Os cínicos, uma escola socrática menor, não foram os primeiros, mas talvez tenham sido os mais reconhecidos por levar às últimas consequências a máxima “seguir a natureza”. Seguindo este princípio, Diógenes de Sínope, maior representante desta escola de pensamento, aprendeu que se um rato podia morar no esgoto, então ele podia morar num barril, e se uma criança podia beber água fazendo uma concha com as mãos, ele também não precisaria de talheres para se alimentar. Seguir a natureza como uma linha reta, evitando os falsos caminhos dos costumes, isto é o que Diógenes ensinava.

“Seguir a natureza é fácil”, eles diriam, “é como caminhar em linha reta, basta colocar um pé após o outro, mantendo o equilíbrio”. Um bom exemplo é a respiração, feita pelo movimento contínuo de encher e esvaziar os pulmões. A vida pode ser simples, diriam eles, basta mantê-la simples e pronto. Sempre uma coisa depois da outra, sempre apenas o essencial, o necessário, diriam os animais em coro, não precisamos pensar muito. O extraordinário,  mais do que o imprescindível, não é somente irrelevante, é também perigoso -, e portanto pode ser descartado. Mas será que esta é uma boa definição da vida – ou melhor, da boa vida?

Muitos argumentariam que não existem motivos para deixar de  desfrutar de certos prazeres que, num primeiro momento, parece não ser necessários. Afinal, o que acontece entre uma necessidade básica e outra? Ou, sendo mais direto, o que fazer depois de limpar a casa, trabalhar, jantar e tomar banho? Como preencher este estranho espaço vazio que é o interstício de todas as coisas?

A discussão sobre a moderação dos desejos se arrasta desde os tempos antigos, como toda boa questão filosófica. Albert Camus, muitos anos depois, disse que é exatamente no  momento em que  Sísifo vê a pedra rolar montanha abaixo, desfazendo-se da repetição banal, que o condenado se vê mais livre. Neste ponto, o utilitarismo levado ao extremo começa a soar estranho, não queremos apenas dormir, comer, respirar, e mesmo isso não é apenas uma necessidade, é também fonte de um possível prazer. Em outras palavras, o que fazer com o excesso de vida?

Por que temos tanto medo do que vai além do necessário? Aqui entramos no cerne da questão. A mitologia grega refletiu sobre isso e definiu o ser humano como a encarnação da hybris, isto é, do excesso e do desmedido. Todos os animais possuem suas capacidades e mantêm-se em seu lugar natural, peixes no mar, aves no ar, e assim por diante. Por isso, para os discípulos da moderação,  a figura do animal representa, um paradigma perfeito de ação: desejar somente aquilo que nos cabe. Neste sentido, o ser humano, é visto imediatamente como algo estranho, ele possui a capacidade de querer algo além do que lhe foi dado, ele é um animal desmedido em relação ao seu meio.

Há um ponto importante de inflexão aqui: esta visão só era possível porque o Cosmos Grego era ordenado, medido, harmonioso e equilibrado. Hoje não vemos as coisa bem assim e o universo se mostra para nós com seus exageros e desmedidas. Somos animais naturais, claro, mas parece que no humano é justamente essa natureza que realiza movimentos estranhos e aparentemente desnecessários. 

A vida então também pode ser descrita como desperdício, exuberância, exagero, engano, desvios e imprecisões. A vida não sabe para onde vai, ela é errante e o ato de viver se mostra como mais que o necessário, porque é uma invenção contínua em cima do já constituído. Compor em cima daquilo que somos é o que chamamos de viver. Da mesma forma que  as veias e os neurônios aprenderam a dar voltas em nosso corpo, nós construímos arranha-céus e escrevemos poesia.

Talvez uma resposta mais interessante para o problema do excesso e do equilíbrio seja possível se colocarmos a questão de outra maneira. Podemos pensar a moderação não em termos de proibição e natureza humana, mas como cuidado em escolher os caminhos. A boa escolha, ao invés de pautar-se na abstinência, faz uso da razão, e não cai na armadilha dos moralismos que demonizam o prazer. Aliás, o que seria do prazer sem a razão? E o que seria da razão se prescindisse do prazer?

Olhando desta maneira, a repulsa e o vício talvez não sejam tão diferentes assim – tanto quem se priva de tudo quanto quem faz as coisas compulsivamente não está se exercitando na difícil arte de fazer escolhas. O problema então não é desejar um prazer, o problema é tornar-se escravo dele, ser incapaz de desvencilhar-se. 

Escolher o quê? Mais prazeres e menos dores ou dores que permitam prazeres maiores. E aqui os excessos também nos cabem, basta saber escolhê-los, basta pensar, sentir e planejar com atenção. Se toda regra tem sua exceção, todo exagero tem o seu lugar. Afinal, como diziam os gregos, somos hybris, e isso não precisa mais ser uma acusação que nos deixa envergonhados, podemos integrar isso à definição daquilo que somos. A inesperada conclusão é esta: se o excesso faz parte da nossa natureza, nos cabe a sabedoria para saber sua hora e seu lugar. 

A vida feliz não acontece a despeito dos prazeres, mas o que seria deles sem os conselhos da razão? É na escolha deliberada, caminhando entre excessos e faltas, que a boa vida começa a aparecer. O sentido da vida não é tornar-se uma grande barragem, nem um ingênuo deixar-se levar, não consiste em queimar as fontes de deleite, nem ser queimado por elas. A felicidade humana provavelmente não vem nem da renúncia  nem da indolência, vem do saber diferenciar a hora do sim e a hora do não.

– Jozef Micic

 


Referências

  • Diógenes, o cínico – F. Navia
  • História da Filosofia Vol. 1 – Marilena Chaui
  • Aprender a viver 2 – Luc Ferry

Como citar

TRINDADE, Rafael. Um pouco mais que o necessário. Razão Inadequada, 2023. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/02/05/um-pouco-mais-que-o-necessario/>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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