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Viver é ser agraciado pelo tempo, mas o tempo é um deus ardiloso: ele nos concede sua bênção com a condição de nossa incapacidade de fazê-lo parar. A vida é um momento que escapa pelas horas. Francamente, é um contrato bastante injusto, quem o teria assinado se soubesse de antemão? Tivessem nos oferecido a chance, como poderíamos deixar de encarar este deus nos olhos e questionar: “Por que é que tem que passar?”. Após receber um risonho silêncio como resposta, argumentaríamos: “Ora, não estamos tratando de um recurso finito!”. É difícil imaginar uma situação em que mudaríamos a conversa a nosso favor. A despeito das queixas, o tempo insiste em passar, incompassivo – e rápido.

Às vezes soa como uma maldição: há de passar; mas também existem momentos em que isso nos reconforta. Queremos o tempo da alegria lento, e que as tristezas passem. Quem nunca quis ter o superpoder de parar um pouco o tempo? Uma pausa na vida – para vivê-la com calma, para ficar mais algumas horas na cama de manhã e conversar até mais tarde à noite, para cuidar das plantas sem pressa, para ler cada frase duas vezes, para estacionar o Sol no momento exato em que ele pousa sobre o horizonte.

Se pudéssemos ao menos retornar aos momentos mais significativos, sem mudar nada mesmo, apenas voltar àquele dia em que conversávamos em frente ao lago, sob as árvores, quando a relva espargia em flores; ou àquela manhã em que caminhávamos na praia até que o Sol nos empurrou para dentro do mar, e lá nos abraçamos, imensos; ou àquela noite chuvosa em que compartilhávamos o sofá sob as cobertas após duas garrafas de vinho. Mas o calor não volta, e o tempo também não. 

Somos os condenados do tempo, e todos os dias bons trazem consigo a inevitável tragédia da finitude. A lembrança – tão fugaz, mas tão valiosa – talvez seja uma cláusula que conseguimos adicionar ao contrato, não se sabe por meio de qual barganha. Lembrar é uma forma de teimosia, nosso primeiro protesto contra a natureza evanescente do tempo. Ainda que a memória seja curta, temos os antigos diários, as velhas fotografias, os pequenos objetos guardados, que nos ajudam a trazer um pouco dos momentos de volta, aumentando as possibilidades de dar sentido ao correr dos dias. A sentença da efemeridade foi declarada de antemão, mas a memória mostra que nós também temos astúcias.

Revoltados, nós inventamos recursos para parar o tempo, e eles são vários. A música, por exemplo, é uma construção feita de vibrações no ar, capaz de impor um ritmo ao tempo, fazê-lo andar em sua linha, correndo, acelerando, ralentando – até parar! Não é um truque fácil de se executar, porém. Requer planejamento e não acontece sem o envolvimento do ouvinte. De qualquer maneira, o interessante é que a música, ao inventar um movimento sobre o tempo, cria também o seu repouso. Mais ou menos da mesma maneira que articula os sons com o silêncio. Interromper o tempo é um artifício que se obtém também com traços, cores e luzes: a arte é uma espécie de revolta pela qual o artista recria o mundo.

A lembrança e a arte, entretanto, não são nossos únicos apelos contra o imperativo temporal. Aliás, talvez elas possam ser pensadas como efeitos de um terceiro e estranho recurso: a contemplação do presente ou, para encurtar, a presença. Sua estranheza advém do fato de que, quando realmente paramos para observar, o tempo parece não passar. Nós sabemos que ele passa, porque aprendemos a associá-lo ao movimento, porque estamos cercados de relógios, porque vivemos sob o regime do trabalho, enfim, por muitos motivos. No entanto, existem perspectivas que desnudam o tempo de sua matéria e, através delas, acessamos uma espécie de eternidade.

Afastar-se das demandas do mundo muda a nossa perspectiva sobre o tempo.  Existem muitas maneiras de fazer isso: a meditação, por exemplo, é uma prática de dar corpo ao presente, e a filosofia não deixa de ser uma meditação que dá corpo ao pensamento. Que disposição é essa, a partir da qual impomos um presente tão denso que rompe a cadeia entre o presente e o futuro? É difícil de definir com certeza, mas podemos começar pela ideia de que a única métrica suficiente para pensar o tempo é a da eternidade.

A nossa ideia de tempo não possui nenhuma consistência sem o pressuposto de que ele é contínuo, infinito e, mais, de que ele está totalmente entrelaçado num plexo inexorável de relações. A princípio, isso pode parecer um argumento que nos impede de imaginá-lo parado; mas na verdade é o contrário: o tempo eterno não passa, porque não há intervalo entre o antes e o depois, há continuidade. Este é o sentido divino que alguns filósofos atribuem ao tempo, Espinosa dentre eles.

Mas para falar com Deus, é preciso calar a voz – como Gilberto Gil nunca parou de cantar. Falar, no entanto, nos é imperativo. Logo o corpo anuncia sua fome, os céus trazem a tempestade, e os pés voltam ao chão. Nosso acesso ao tempo eterno só acontece mediante a suspensão das leis habituais da nossa relação com a natureza. Nossa bolha temporal estoura rápido, e os segundos voltam a escorrer como a gema viscosa recém perfurada se espalha sobre a clara. Ainda que dure pouco, a experiência de estar absolutamente presentes em algo – em alguém – é o mais próximo da eternidade que somos capazes de chegar. Logo o tempo volta a imperar em seu reino, ainda que esteja nu.

É claro que não seria tão fácil driblar o tempo, mas nós temos gosto em desafiar os deuses. Há quem insista que se trata de uma batalha perdida, que não fazemos mais do que nos enganar. De fato, nós, que somos um pouco emocionados, temos dificuldade em apresentar evidências: não dá pra montar um gráfico mostrando a diferença entre a maneira como o tempo passa no bosque e no centro da cidade. Além disso, não estamos preparados para a eternidade. A placidez logo vira tédio e o desejo precisa voltar a se mover. A questão é que toda alegria quer durar indefinidamente, como uma linha costurada na eterna trama do tempo.


Referências 

Beethoven, Sinfonia número 9
Lucrécio, Sobre a Natureza das Coisas
Ursula K. Le Guin, Sem Tempo a Perder
Camus, O Homem Revoltado
Gilberto Gil, Se eu quiser falar com Deus
Nietzsche, Assim Falou Zaratustra
Espinosa, Ética


Como citar

LAURO, Rafael. Um jeito de parar o tempo. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/03/04/um-jeito-de-parar-o-tempo>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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