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Ao que tudo indica, a leitura e a escrita são atividades gêmeas. Quando nos apresentaram ao universo das letras, elas vieram juntas: aprendemos simultaneamente a ler e escrever. Aconteceu mais ou menos assim: o desenho de uma bola nos foi mostrado ao lado de um outro desenho estranho feito de linhas retas e curvas, ao que nos disseram: “isto também é bola”. Dá até pra imaginar nossa careta confusa. Então, nos incentivaram a copiar aquelas imagens, o que não foi tão difícil, afinal no começo isso não passa de uma maneira de desenhar.

Pouco a pouco, graças à gentileza de muitas mulheres dedicadas ao ensino dessas importâncias, nos demos conta: estávamos desenhando sons! Isso não é pouca coisa. A alfabetização é uma das maneiras mais antigas de ensinar o pensamento abstrato. Através dela, descobrimos que uma letra é uma porta para outro mundo, ainda que mantenha sempre alguma relação com o nosso. Essencialmente, o que aprendemos quando começamos a ler e escrever é que o mundo é mais do que o que nós vemos imediatamente diante de nós, ele se multiplica naquilo que representamos dele.

Um texto conta mais que uma simples história, ele nos permite reimaginar o real segundo outras potências, porque a palavra escrita carrega uma força de fantasia, ela veste nosso imaginário a ponto modificar a nossa relação com as coisas. Deve ser por isso que nos apaixonamos pelos livros. Eles nascem do espaço que existe entre o que as coisas são e como elas poderiam ser – ao menos os bons livros. Em outras palavras, a leitura e a escrita são maneiras de enfeitiçar a realidade, fazendo com que as coisas se repliquem de maneira inusitada sob os nossos olhos, multiplicando o infinito do mundo pela grandeza imensurável da imaginação.

René Magritte, O Espelho Falso

Como boas irmãs, leitura e escrita andam lado a lado, mas ao nos envolver com cada uma delas nós fomos aprendendo o nosso lugar, até que começamos a perceber que, apesar de tão intrinsecamente conectadas, elas são atividades diferentes. Por motivos didáticos, nos ensinaram a ler e escrever como se se tratasse da mesma coisa, como se fosse uma só atividade exercida em duas frentes similares, só que quanto mais experimentamos ler e escrever, mais percebemos que são maneiras muito distintas de se relacionar com as letras.

Pode ser que, por termos ouvido tanto a expressão “ler e escrever”, acabamos acreditando que uma coisa se converte diretamente na outra, que ler bem é escrever bem e vice-versa. Apesar de existir alguma relação entre as duas coisas, não é exatamente assim que funciona. No fazer, trata-se muito mais de ler ou escrever do que de ler e escrever. É claro que uma sempre envolverá a outra, mas parece difícil negar que, cedo ou tarde, nos deparamos com a diferença envolvida em cada uma dessas atividades, e começamos a nos perguntar sobre o que é cada uma à parte da outra. Mais do que isso, chega o momento em que precisamos questionar o que nós mesmos esperamos na relação com cada uma delas.

Michel de Montaigne, filósofo do século XVI e escritor de um único e longo livro de ensaios dedicados ao retrato de si mesmo, dizia que tanto na leitura quanto na escrita o que ele queria era uma boa conversa. No entanto, ele sabia muito bem que se tratavam de espécies bastante diferentes: ao ler, nós buscamos inspiração no pensamento de um outro que tem um contorno definido, minimamente conhecido; agora, ao escrever, nós conversamos com um outro do qual não sabemos absolutamente nada e, o que é ainda mais estranho, que não deixa de ser também um reflexo distorcido de nós mesmos.

Comecemos pela leitura. Quando abrimos um livro, encontramos ideias organizadas por alguém necessariamente diferente de nós mesmos e, por isso mesmo, temos a oportunidade de colocar em conversa aquilo que nós pensamos com aquilo que ali se encontra. Imagine ter contato com alguém que viveu milênios atrás, do outro lado do mundo, chamando as coisas por outros nomes… é uma grande sorte ter isso à disposição em algumas páginas. E mesmo quando lemos alguém mais próximo e parecido com a gente, temos acesso a uma outra perspectiva daquilo que conhecemos, o que é muito valioso. Uma boa leitura é uma conversa franca movida por um interesse tão genuíno pelo que o outro tem a dizer que, ao final, nós desenvolvemos uma verdadeira relação, na qual buscamos companhia para pensar.

Escrever um livro é um processo completamente diferente, uma espécie de solidão acompanhada. Se a leitura é uma conversa da qual participamos mais ouvindo do que falando, a escrita é o contrário: nós é que falamos, parando aqui e ali para ouvir aquilo que estamos dizendo. Às vezes parece um delírio, no qual mesmo falando sozinhos sentimos que estamos sendo ouvidos. A questão é que nós nunca sabemos exatamente para quem, para qual lugar, para qual tempo estamos escrevendo, e é isso que faz da escrita uma arte de cuidar das palavras – fazemos o possível para representar aquilo que vemos, sentimos e pensamos de maneira a lançar ao porvir um traço persistente daquilo que fomos.

Seja pela leitura, seja pela escrita, nós participamos de uma comunidade de pensamento que nos permite abandonar um pouco nossa pequena individualidade, tão apertada, sempre em risco de fechar-se sobre si mesma. Ler atenciosamente o que alguém pensou é abrir uma fenda atemporal pela qual estabelecer um diálogo. Isso talvez explique a euforia que acompanha a descoberta de um novo autor ou autora. Quando descobrimos um bom livro, sentimos a sorte de ter feito uma nova amizade. Por outro lado, escrever cuidadosamente o que se pensa é um exercício ensimesmado, mas que não consegue permanecer autocentrado, porque nos coloca sob a perspectiva de um outro absolutamente insondável, que é o leitor. Talvez por isso o ato de escrever seja tão angustiante, é como encarar-se por muito tempo no espelho: a imagem que vemos à nossa frente é a nossa, mas não somos nós mesmos que olhamos de volta.

 

René Magritte, A Reprodução Proibida

 


Referências 

Anne Carson. Eros, o Doce-Amargo
Ursula K. Le Guin. Sem Tempo a Perder
Michel de Montaigne. Ensaios


Como citar

LAURO, Rafael. Ler ou Escrever. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/03/25/ler-ou-escrever>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Ralph
Ralph
7 meses atrás

Parabéns pelo texto, ficou maravilhoso.