Você já sabe o que acontecerá neste texto. Não há surpresa, leremos juntos algumas ideias que misturam referências e experiências diversas com a angústia da folha em branco e do prazo apertado. Com um pouco de sorte, estas linhas servirão para chacoalhar um pouco as ideias, apenas o suficiente para que possamos trocar qualquer coisa mais interessante do que aquele respeitoso comentário de elevador, “parece que vai chover”. Ora, se já sabemos o que esperar disso tudo, então por que estamos aqui? Somos seres inevitavelmente habituados, a ponto de nem saber distinguir propriamente o novo do velho. Aliás, talvez este texto seja repetido. Será que já não o ouvimos em outro programa? Eu, que agora escrevo, me sinto particularmente desafiado por essa sensação a tentar fazer alguma coisa para que ele não se perca na amálgama de memórias que o tornam conhecido antes mesmo de ser lido. A verdade é que provavelmente falharei, tal é a força do costume. No entanto, estou contente em tentar mais uma vez.
A condição de ser adulto é a de ser governado pelo hábito, isto é, pela contração da repetição da experiência em crenças que orientam cada um dos nossos passos1. Nos idos da infância, éramos seres espantados, que viam as coisas pela primeira vez, observando a chuva boquiabertos. Aliás, aquele negócio de que os perus morrem afogados por olhar a chuva de boca aberta é um mito: eles se acostumam – e nós também. É bastante absurdo que caia tanta água do céu, existem lagos no meio das montanhas. É por isso que passamos os primeiros anos da vida a perguntar “por quê?”, mas o fato é que, depois de observar a chuva repetidas vezes, a pergunta é substituída por um pequeno vácuo intransitivo, “chove”. Para cada uma das coisas que conhecemos, houve um processo similar de exposição reiterada que se traduziu, por meio de um processo cognitivo bastante elaborado, em certeza de que as coisas são como são, ou melhor, de que serão como foram.
Por mais que as coisas possam às vezes nos surpreender, todos nós organizamos a vida a partir da ideia de que os eventos vão se repetir de maneira semelhante à experiência prévia que tivemos deles. Ninguém acredita que um dia vá chover fogo em vez de água, há menos que more perto de um vulcão. Agora, imaginem alguém que, apesar de ter plenas condições de compreender, seja absolutamente ignorante da ordem estabelecida; por exemplo, um ser alienígena que de repente passa para uma visita. Ele não sabe absolutamente nada de como as coisas funcionam por aqui. Qual seria a sua reação? É de se supor que a ausência de hábito tornaria a experiência tão intensa que pareceria uma alucinação: cada pequeno pedaço da realidade conteria algo desconhecido. Fatos banais como andar de bicicleta ou mascar chicletes seriam inacreditáveis aos seus olhos. Imagine o tipo de perguntas que ele faria sobre isso.
Será que alguém assim ainda mora dentro da gente? Acostumar-se com o mundo é importante, certamente, mas não deixa de ser, ao mesmo tempo, uma forma de perdê-lo. Acreditar cegamente que já conhecemos tudo aquilo que borboleteia sob os nossos olhos acaba por nos fazer perder a graça de seu voo. Talvez exista uma eterna juventude acessível na maneira de olhar as coisas: será que podemos voltar a sentir como pela primeira vez a chuva caindo sobre a pele? Se existe uma tendência ao costume na natureza humana, então parece que o único caminho é fazer força na direção contrária. É verdade que a enésima nunca poderá ser a primeira experiência, mas talvez ainda possamos encontrar o que há de inédito em seu acontecer. Para tanto, precisamos buscar maneiras de sensibilizar o entendimento desnaturalizando a experiência. Gostaríamos de pegar emprestado a perspectiva da criança sem precisar voltar à infância ou do alienígena sem ter que fazer uma viagem intergaláctica, mas como fazer isso?
De alguma maneira, já estamos fazendo isso por meio deste texto, mas vamos deixar as coisas um pouco mais práticas, vamos fazer juntos um primeiro experimento. Seja lá onde você estiver, comece a reparar nos acontecimentos ao redor e se pergunte: “como veriam isso daqui a dois mil anos?”. Vai lá, pode pausar, pare um pouco e observe o mundo por alguns minutos.
Se você, assim como eu, está no meio da cidade, deve ter achado no mínimo engraçado. Te descrevo o que acabei de ver: um rapaz alto acabou de passar empurrando o cachorro num carrinho de bebê, ao lado estava uma simpática senhora em roupas estampadas com rosas que lia anúncios colados no poste, entre eles havia números de disque sexo, promessas de amarração, limpeza de sofás e desentupimentos diversos. Uma cena bastante peculiar para uma segunda-feira à tarde, que apesar da particularidade se repetem aos montes por todos os lugares. Gostaria muito de saber o que você viu, mas vamos seguir com um segundo experimento.
Pode ser que você esteja no campo ou em algum lugar que provavelmente não vai mudar muito ao longo de tão pouco tempo, então o experimento provavelmente não funcionou. Nesse caso, proponho uma outra versão: procure um outro animal ou planta e se pergunte o seguinte: “como são as coisas desta perspectiva?”. Tome seu tempo.
Por aqui, acabei de ver um pequeno passarinho ocre, que se banhava numa poça d’água com um volume não muito maior do que o que conseguiríamos segurar entre as mãos. Durou não mais do que alguns segundos, até que ele se arrepiou inteiro e partiu voando para longe. Me senti estranhamente refrescado ao imaginar o vento batendo nas asas molhadas. Quantas perspectivas existem num só momento? Dadas as devidas condições, podemos passar um bom tempo a observar as coisas por outros ângulos, passeando do lado de fora de nós mesmos.
Parecem dois experimentos muito diferentes, mas não são, porque servem para nos empurrar para fora de nossa perspectiva habitual. Poderíamos reunir ambos – e inventar outros – sob um mesmo nome: o exercício do idiota. A ideia de ser chamado de idiota provavelmente não vai agradar muita gente, mas talvez seja justamente por isso, pela necessidade de olhar a palavra por outra perspectiva, que ela seja tão apropriada como nome. A idiotice nem sempre significou estupidez ou burrice; milhares de anos atrás, os gregos2 a usavam para falar das pessoas que não participavam dos assuntos da pólis, ou seja, para dizer da gente que andava por aí deslocada dos interesses da cidade. Talvez seja por isso que as crianças não fossem consideradas cidadãs; elas habitam outro mundo, poderíamos dizer que elas são como o alienígena alucinado, passeando fora dos muros da razão, junto com os lunáticos fora de órbita, os doidos varridos pelo vento, os poetas de todo o tempo, os frutos imaturos do saber, os perdidos em detalhes desimportantes, os apaixonados em rota de colisão e os brincantes a dançar na chuva. Como poderíamos retornar ao bom da infância sem nos tornar um pouco idiotas?
1 Hume foi o filósofo que propôs o hábito como princípio que condensa a repetição em crença, e o colocou como fundamento de todo o comportamento animal. Ou seja, não é apenas com a chuva que nos acostumamos, mas com todo fenômeno recorrente que nos cerca. Um exemplo famoso é a afirmação de que nós só nos alimentamos porque temos a certeza de que aquilo que comemos realmente irá nutrir; a questão é que essa certeza se fundamenta sobre o fato de termos experimentado muitas vezes essa concatenação de causas e efeitos.
2 idiota (ἰδιώτης), possui idios como raiz, que é relativo à pessoa e resulta em palavras como idioma e idiossincrasia, que possuem o mesmo radical.
Muito boa a sua (filosófico-provocativa) crônica, Rafael! E falando em provocação, o que tem no chamado “hábito” de promessa de ocupar/atender/responder o (pre)suposto desejo do outro, e receber compensações e evitar punições; como Broges ao perguntar afirmando, referindo-se nietzschianamente ao cristianismo, “o que é o céu, que não um suborno,e o inferno,que não uma ameaça? O que desejamos, muito lacanianamente, é desejar o desejo do Outro (o “o” maiúsculo não é acidental ou grafia equivocada). Abraço.