Pense na primeira vez que você visita a casa de alguém. Você pede licença, entra e fica em pé, até que o anfitrião te diga onde sentar. Se ele não te diz, você imita o que ele faz. Pede no máximo um copo d’água e espera até saber o que fazer a seguir, qual é o tom de voz adequado, como posicionar o corpo, quais assuntos evitar, etc. Passados alguns minutos você pergunta, um pouco constrangido, se pode usar o banheiro. Ali, sozinho, respira aliviado e começa a realmente observar o lugar novo. Na volta, tira o casaco, começa a se soltar e segue, dessa maneira cautelosa, se ambientando naquele conjunto de regras desconhecidas.
O espaço onde moram as pessoas é diferente do espaço público, mas o nosso comportamento é semelhante. O ambiente privado possui regras que nós não conhecemos, e isso nos deixa mais apreensivos, mas o fato é que o mundo também está estruturado por limites invisíveis. A diferença é que nós já esbarramos neles antes e, portanto, nos acostumamos a desviar. Assim, andamos esguios, prontos para esquivar ao menor sinal de transgressão. Seja em casa ou na rua, nossa sociabilidade é estruturada pela antecipação das normas. Talvez seja esse o motivo que esgota a nossa bateria social. Entre as outras pessoas, estamos o tempo todo fazendo uma leitura, rastreando as fronteiras do que, em cada situação, se pode e não se pode fazer para continuar impunes.
É dispensável dizer o quanto detestamos ser punidos. A rispidez com que somos lembrados que estamos fora dos limites pode escalar a níveis que nos deixam perpetuamente constrangidos. Às vezes, não passa daquela queimação que nos toma ao lembrar do ridículo, e ela vai embora em alguns dias. Mas há casos em que as fronteiras são feitas de violência, concretas a ponto de modificar a maneira como seguimos o caminho dali em diante. Nunca sabemos qual é o caso, então preferimos evitar tudo que possa ocasionar uma infração. Assim, somos subjetivados pela obediência, e desejamos, antes de mais nada, não incomodar ninguém. Nosso hábito de dizer “desculpa qualquer coisa” atesta essa polidez involuntária: “nem sei se errei, mas caso tenha errado, por favor não me culpe.”
Passar despercebido é um privilégio que nem todos possuem, mas é também uma violência que não somos obrigados a aceitar. As normas nos antecedem, mas nós não precisamos antecipá-las – e para isso talvez seja útil pensar uma ética da desobediência. Neste campo, a positividade do conflito é o valor norteador, isto é, a ideia de que o embate é fundamental para que os nossos desejos sejam melhor concatenados. Ignorar as proibições pressupostas é uma prática que guarda boas surpresas: muitas vezes, a invasão que neuroticamente antecipamos sequer é notada, outras vezes acaba sendo relevada – mas mesmo quando o conflito vem à tona podemos nos surpreender ao fazer dele uma chance de contestar, insistindo um pouco mais no que queremos fazer, em vez de desistir antes de tentar.
Assim, a primeira diretriz de nossa desobediência é, simplesmente, fazer o que se quer. Substituir a antecipação pela experiência. Essa conduta não é desconhecida: todos nós fomos crianças que, por desconhecer os limites, não os podiam prever. Em outras palavras, antes de ser moldados, experimentávamos mais e melhor. A coerção reiterada a que fomos expostos durante o crescimento nos ensinou não apenas quais regras respeitar, mas também a tendência de não testar os limites, o que é muito pior. Uma estratégia eficaz na recuperação dessa inocência é a deliberada desconsideração das regras que não forem explicitadas: se ninguém disse que não pode, então não somos obrigados a saber e, mesmo se soubermos, podemos fingir, agir como se não soubéssemos. É claro que vão nos acusar de cínicos, mas a depender da situação não seria esse um elogio?
Nosso movimento costuma ser impedido antes mesmo de começar, porque boa parte da estrutura da sociabilidade é invisível: os acordos são tácitos, as prescrições, subentendidas. Afinal, não estamos tratando do campo legal, das proibições do direito, mas das regras implícitas que regem a sociabilidade: como, por exemplo, o quanto podemos encostar uns nos outros ou quanto tempo se pode permanecer na casa de alguém. O fato é que nós nunca sabemos exatamente até onde podemos ir e, em vez de tentar, ficamos paralisados tentando adivinhar ordens silenciosas. Agir a despeito do código de conduta é o que faz com que os limites sejam explicitados. Uma lei enunciada é muito melhor, mas elas só vêm à tona quando esbarramos nelas, daí a importância de desejar o contato. Quando a norma aparece é que temos a chance de pensar, e isso pode nos levar a compreendê-la como justa, aceitando sua necessidade, ou questionar a razão das coisas serem como são.
Depois do fazer, então, temos o segundo passo de nossa ética da desobediência, que é a negociação. Para tanto, é preciso estar preparado para enfrentar caras feias – mas não apenas: é preciso também, pelo menos num primeiro momento, saber conter a própria raiva. O embate direto e agressivo deixa de ser sobre as razões do conflito e se transforma numa mera disputa de poder. Portanto, é melhor acolher o vigilante da disciplina, tentando convencê-lo de que não existem regras inflexíveis, apenas convenções, e que o problema dessas convenções é que muitos de nós não tiveram nenhuma participação na sua instituição. Agora, essa boa vontade depende da quantidade de violência do opressor: não dá para negociar com quem lhe atira bombas. Assim, se estivermos certos de que os limites impostos são injustos, de que não resta saída senão o embate direto, então vamos para a briga.
Um cuidado importante: essa ética não é uma rebeldia sem causa, não é puro gosto pelo desafio. O perigo de pensá-la dessa maneira é de acabar desconsiderando acordos que têm razão de ser, e assim agir pensando apenas em si mesmo, violentando os outros no processo da própria afirmação. Desobediência sem atenção ao outro é apenas desrespeito. Agora, alguma força será necessária se quisermos modificar a estrutura da sociabilidade em favor dos desejos. Então, também não nos serve a recusa total dos incômodos. É andar numa corda bamba, conflituosa por excelência. O que baliza a escolha de nossas batalhas é a consideração dos outros, isto é, a implicação nos conflitos pela perspectiva da comunidade, não da individualidade. As regras sempre podem ser desconsideradas, mas não devemos confundir autonomia com autocracia: é preciso sempre lembrar que a alegria-mútua é o horizonte em direção ao qual direcionamos as velas.
A desobediência inverte o sentido habitual do nosso ser no mundo, pois o que rege a nossa sociabilidade é um princípio de harmonia: o problema é que ela é feita de silêncios. Somos convocados a nos manter calados em prol do apaziguamento dos ânimos, mas isso muitas vezes nos custa o bem-estar. Quando desejamos algo diferente, a etiqueta sugere perguntar antes, como maneira educada de interagir com os outros. Isso não é um problema em si, no entanto funciona na prática como tendência à obediência, porque exige a antecipação de regras não ditas. Ou seja, o costume de sempre perguntar antes é resultado de uma domesticação, que nos predispôs a tratar necessidades como vontades das quais podemos prescindir. Isso é perigoso, especialmente para as pessoas que vivem fora da norma (branca, heterossexual, cisgênera, monogâmica, etc.), pois o que se pede a elas o tempo todo é que elas não sejam como são. Viver fora da norma implica em causar incômodos, e o pedido de educação, nesses casos, pode ser apenas um disfarce para uma violência de adaptação. Em suma, a polidez é uma postura rígida em relação aos próprios desejos, e pode acabar se transformando em hábito de desconsiderá-los. Por esse motivo, sugerimos um pouco de caos. Comecemos por perguntar depois: da próxima vez que for à casa de um amigo, abra a geladeira e pegue uma cerveja.
Referências
Vigiar e Punir, Michel Foucault
Desobedecer, Frédéric Gros
Assunto de Família, Hirokazu Koreeda
Concerning Violence, Göran Olsson
Hehe, bonito e interessante. Curioso que, no caderninho que carrego debaixo do braço para todos os cantos, tenha escrito, em outras palavras, a exata mesma observação: “Primeiro agir, depois perguntar”.